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Crítica | O Discreto Charme da Burguesia

por Ritter Fan
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Luis Buñuel achava que estava se repetindo demais e havia decidido que, depois de Tristana, Uma Paixão Mórbida, encerraria sua carreira. Se ele estava fazendo charme ou não, nunca saberemos com certeza, mas a história nos mostrou que Buñuel dirigiria, em seguida, três de seus maiores clássicos, começando com O Discreto Charme da Burguesia, passado por O Fantasma da Liberdade e encerrando sua brilhante carreira com Esse Obscuro Objeto do Desejo.

Conta a lenda que, incomodado por esse sentimento de “repetição”, Buñuel foi conversar com seu co-roteirista de tempos, Jean-Claude Carrière, para explicar sua situação. Não demorou  muito e Buñuel também encontrou-se com o produtor Serge Silberman que lhe contou sobre um dia em que esquecera que havia combinado um jantar com seis convidados, somente para dar de cara com todos eles à sua porta e tendo que se virar para lidar com os amigos esfomeados.

Essas fagulhas – repetição e jantar esquecido – foram suficientes para dar nova partida à mente surreal de Luis Buñuel e ele e Carrière partiram para escrever o roteiro do filme que viria a ser indicado ao Oscar de Melhor Roteiro e cujo resultado final efetivamente ganharia o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1973. Nada mal para quem estava se achando repetitivo, não?

Mas a repetição é mesmo um tema central em O Discreto Charme da Burguesia. O foco da narrativa é em um grupo de pessoas que não conseguem ter uma refeição juntas pelos mais bizarros fatores, desde o esquecimento do convite para jantar, até um treinamento militar acontecendo no local. De certa forma, essa temática surreal já havia sido usada pelo próprio Buñuel no excelente O Anjo Exterminador, em que convidados de uma festa não conseguem ir embora do local. Trabalhando essa abordagem, o diretor novamente alfineta o estilo de vida da classe média alta, sem se esquecer do clero, representado pelo bispo que deseja ser jardineiro.

A narrativa é tipicamente o resultado de uma mente surrealista. Os acontecimentos, por mais absurdos que sejam, são serenamente aceitos pelos personagens que ou convivem com a situação ou simplesmente se afastam. No entanto, intercalando as cenas “reais”, Buñuel nos apresenta a diversas sequências de sonho (ou pesadelo, depende), que entram na narrativa bruscamente, normalmente narradas por personagens que são recém-apresentados, como o soldado na cafeteria ou o outro soldado na casa do Sr. e Sra. Sénéchal (Jean-Pierre Cassel e Stéphane Audran). Tentar encontrar explicação para a mistura de sonho e realidade é cair na armadilha comum a críticos de filme. Buñuel trabalha os elementos surreais sem emprestar-lhes significado específico, ainda que, claro, o conjunto da obra funcione como uma crítica ferina à burguesia como um todo e sua incapacidade de transitar no mundo real ou mesmo de ter algum tipo de significado contundente para eles mesmos.

Fernando Rey, que havia trabalhado com Buñuel diversas vezes, sendo que a mais recente em Tristana, vive Don Rafael Acosta, diplomata da fictícia República de Miranda que, acompanhado dos decadentes Thénevots (Paul Frankeur e Delphine Seyrig), chegam para jantar na casa dos Sénéchal. Frustrada a tentativa, logo descobrimos que Acosta usa de sua bolsa diplomática para trazer drogas para a França e vendê-las para os Thénevots, traficantes locais. Também aprendemos que Acosta é constantemente ameaçado por um grupo terrorista de seu país. Esses elementos, juntos e misturados e apresentados e reapresentados ao espectador de maneiras diferentes ao longo da película – repetição! – formam o cerne narrativo do trabalho de Buñuel que, porém, vai, em um crescendo, abrindo espaço para situações cada vez mais estranhas e inacreditáveis. O diretor consegue, porém, tornar cada situação muito natural e, com isso, surpreende o espectador com uma coesão narrativa que, apesar de não existir em sua plenitude, não confunde e não aliena.

O elenco é outro aspecto que merece aplausos. O já conhecido Fernando Rey está se divertindo no papel de traficante e Stéphane Audran, no papel da lânguida e inadvertidamente engraçada Alice Sénéchal é um deleite visual. Buñuel consegue compor suas cenas de forma a ressaltar a sensualidade de suas atrizes – mesmo uma que não fala e faz o papel de terrorista – e a decadência da classe que elas representam, sendo que os personagens masculinos são retratados como abusivos, cheios de si e controladores, características que acabam por tornar mais evidente a crítica social que o diretor desejou imprimir nessa sua fantasia surreal.

A auto-crítica de Buñuel o levou a fazer um de seus melhores trabalhos e o encheu de energia para encerrar sua carreira com chave de ouro. O Discreto Charme da Burguesia é um triunfo surreal no crepúsculo criativo de um gênio.

  • Crítica originalmente publicada em 20 de janeiro de 2014. Revisada para republicação em 12/09/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, França – 1972)
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Jean-Claude Carrière
Elenco: Fernando Rey, Jean-Pierre Cassel, Stéphane Audran, Paul Frankeur, Delphine Seyrig, Bulle Ogier, Julien Bertheau
Duração: 102 min.

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