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Crítica | O Enigma de Kaspar Hauser

por Fernando JG
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No ano de 1960, Clarice Lispector publica o seu Laços de Família, e nele o conto A Menor Mulher do Mundo. Neste espaço, ela vai contar a história de um pesquisador francês que encontra, no fundo de uma floresta africana, uma pigmeia grávida, a menor mulher do mundo. Este momento sai na primeira capa dos jornais e escandaliza o mundo, especialmente a classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro, que se abre em estranhamento quando descobre a existência dessa pigmeia, gerando um choque entre cultura e barbárie. Com o horror levantado pela descoberta insólita, começam os comentários e as leituras pessoais dessa classe média em relação a esse outro que foi encontrado nos confins da África. Então surge a questão: Quem é a cultura e quem é a barbárie? É nesta encruzilhada temática que o cineasta alemão Werner Herzog processa o seu filme. Aqui, a insólita descoberta não é mais a pigmeia, a menor mulher do mundo, mas Kaspar Hauser, o enigma.

Cada um por si e Deus contra todos” é o título em alemão, mas que só foi atribuído ao filme dias depois, logo quando Werner sai de uma sessão do Cinema Novo lá na Alemanha, que rodou Macunaíma, e foi de onde ele tirou a frase, encaixando como uma luva no seu mais novo filme: O Enigma de Kaspar Hauser

O roteiro – que é adaptado de um caso real, de um menino que apareceu no meio de uma praça em Nuremberg, no ano de 1828, com apenas uma carta na mão, que não foi escrita por ele, contando que passou a vida inteira privado de contato social, sobrevivendo apenas de pão e água – consegue dar conta de um trajeto inteiro: vida e morte, com a narração visual do processo formativo de um ser humano em sociedade. Gosto de pensar em Kaspar como se ele fosse um recém nascido, que cresce e se desenvolve pela segunda vez, como um renascimento social, passando por uma metamorfose, como ocorre com Matraga, de A Hora e Vez de Augusto Matraga (1967). 

A história de um jovem que esteve privado de todo convívio social durante o seu desenvolvimento, criando-se na natureza mais bruta, é contada pelas mãos sempre curiosas de Herzog – com o perdão da comparação, mas em alguma distância pode ser comparado com produções mais recentes, como Dente Canino, do Yorgos Lanthimos. Recluso de todas as convenções culturais que vigoram no que chamamos de civilização, recebemos um sujeito que nunca soube de modelos civilizacionais, portanto, desconhece a fala como código de linguagem. Não só ela, mas comprimentos, decoro, etiquetas e um raciocínio que fosse claro e evidente como a razão, aspecto fundante pelo qual Kaspar Hauser é sempre questionado, além do fato de não saber andar em duas pernas. É com essa figura humana que recebemos o longa, depois de uma entrada sublime com planos-paisagem que parecem telas do barroco holandês pintadas a óleo, enquanto a ambientação é feita pela Canon In D Major do Pachelbel, um compositor alemão do seiscentos. A fotografia do filme é acurada na transmissão desse caráter enigmático e misterioso do personagem e toda a paleta de cores parece ser inspirada em um estilo barroco, com uma marca mais escura e terrosa em todos os tons utilizados. A trilha sonora é irretocável e oferece uma imersão quando misturada com as figuras da natureza. O diretor parece pintar à mão o seu próprio filme.

Logo no início, Werner coloca diante dos nossos olhos a figura de Kaspar, que está sentado no chão, e a todo tempo o cineasta não deixa de fazer um estudo conduzido pela câmera sobre o personagem, filmando cada um dos seus gestos, tentando entender um pouco mais esse diferente, quase primitivo. Com uma câmera contemplativa, como sempre, Werner Herzog está pronto para olhar o mundo e seu extremo, ainda que o cineasta recuse a ideia de que seu estilo cinematográfico seja esse. 

Gravar o insólito e o desconhecido em Herzog parece uma forma de pensar esse embate constante entre natureza e cultura, ou civilização e barbárie, em que o moderno e o atrasado se chocam. É muito curioso o cinema de Herzog ser atraído por esse recorte e não por acaso ter construído uma carreira, ainda que curta, junto de Klaus Kinski, seu ator-problema, que não só nas telas confundia o humano com o animalesco e selvagem, mas também por trás das câmeras. E o mais intrigante é que Herzog sempre acatou essa jóia bruta, chamada Kinski, mesmo com tantos problemas entre os dois, como uma atração pelo estranho e pela forma mais selvática da natureza humana, assim como ele grava a natureza enquanto estado essencial, cru e bruto em Aguirre – A Cólera dos Deuses (1972) e Fitzcarraldo (1982). Kinski, desta vez, não é a estrela do filme aqui criticado, mas Bruno Schleinstein, intérprete de Hauser, ator considerado pelo próprio Werner como seu achado precioso. 

Em Kaspar Hauser, esse desconhecido ganha muito mais destaque em sua diferença quando colocado em sociedade. E então, o filme se divide em dois momentos, um antes e um depois. No primeiro tempo, acompanhamos o susto e a exotificação desse estranho personagem, sendo colocado em espécies de “circos” e espetáculos para o público, que acompanha inquieto e curioso o caso Kaspar. No segundo momento, temos a tentativa de inserção social e um esforço progressivo do próprio personagem em ser um cidadão como todos ali, e relativamente ele consegue se adaptar, aprendendo a falar, a comer em talheres, a andar e a tocar piano. Até o momento em que acontece um ponto de virada na narrativa, protagonizado por uma população que até então se entendia como esclarecida, civilizada. A morte de Hauser, assim como a sua vida, levanta uma série de questões, e é muito inusitada a forma como o cineasta alemão pensa o mal-estar na civilização a partir de um conflito causado pelo embate com a forma mais primitiva e natural das coisas, como elas são. A tragédia do filme se assemelha ao impacto causado por Lars Von Trier em Dogville (2003), quando Grace passa a ser violada por uma população que lhe ofereceu ajuda, cujo pensamento sociológico sobre a natureza do homem é colocado em imagens. Quem é civilizado e quem é barbárie? São estados que se confundem, não podendo ser dito de modo evidente quando termina um e começa o outro.

Se afastando das produções convencionais, especialmente em Kaspar Hauser, o diretor constrói um estudo sobre os processos de socialização como um todo, assim como Tarkovski pensa o seu cinema fora da caixa e produz em cima da arte como símbolo. Werner atua como um cientista, forjando e estudando o homem a partir de uma réplica cinematográfica, a qual ele tem o direito de manipular e obter resultados ótimos, por exemplo, quando questiona a ideia de Deus – noção esta inconcebível para Kaspar. Aqui, o diretor demonstra que Deus é, senão, uma ideia cultural, e não natural, por isso Hauser a rejeita e a desconhece. 

Apesar de ser um homem bom e de um brilhantismo nato, e essa imagem é muito bem transmitida pelo filme, o que ocorre, cada vez mais,  é uma coisificação do personagem. O extremo da alteridade é esse: É ver o outro tão distinto que ele se torna coisa, e não mais humano. É por isso, também, que Kaspar passa por diversos “testes de pensamento”, tentando provar a sua capacidade de pensar e de exercer a razão. 

Não posso deixar de destacar a excelente atuação de Bruno S. que transmite uma verdade única como Hauser. Delicado, sensível e muito atento aos detalhes e à profundidade do seu personagem, Bruno definitivamente é o ponto alto. Além disso, o elenco conta com Brigitte Mira, uma das atrizes-estrela de Fassbinder, que a dirigiu no incrível O Medo Devora a Alma e Roleta Chinesa

O Enigma de Kaspar Hauser é excelente em todos os aspectos e a história é intrigante por completo. O diretor brilha e é possível ver a sua mão em cada frame e em cada detalhe, que se não te faz admirar pela narrativa, com certeza te leva para outra dimensão através da trilha sonora e da fotografia. 

O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für Sich und Gott Gegen Alle, Alemanha, 1974)
Diretor: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog, Jakob Wassermann
Elenco: Brigitte Mira Kathe, Bruno Schleinstein, Clemens Scheitz, Franz Brumbach, Gloria Doer, Hans Musäus, Helmut Döring, Herbert Achternbusch, Johannes Buzalski, Marcus Weller, Walter Ladengast, Wilhelm Bayer, Willy Semmelrogge, Wolfgang Bauer
Duração: 109 min.

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