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Crítica | O Escafandro e a Borboleta

por Gabriel Carvalho
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“Eu decidi parar de sentir pena de mim mesmo. Além do meu olho, duas coisas não encontravam-se paralisadas: minha imaginação e minha memória.”

Contém spoilers.

De antemão, peço que utilize a sua imaginação para ter uma leve aproximação da experiência cinematográfica que será assistir a O Escafandro e a Borboleta. Nesse exato instante, imagine um homem incapaz de falar, incapaz de se locomover, incapaz de mexer as mãos, incapaz de mexer os dedos. Agora, vá além. A incapacidade não é meramente sobre isso. A incapacidade também é sobre não poder mais comer a própria comida, sentir as páginas de um livro passando pelos seus dedos, saborear um novo amor com toda a intensidade. As únicas armas de comunicação desse homem são as pálpebras do seu olho esquerdo. Ele ainda ri, mesmo que seu rosto não mais demonstre um sorriso. Ele ainda se enfurece, mesmo que os gritos não mais ecoem para fora de sua própria mente. Ele ainda permanece sendo ele mesmo, mesmo que, ao olhar de outros e de si próprio, aquele Jean-Dominique Bauby (Mathieu Amalric), estático e debilitado, seja apenas um retrato muito distante do seu eu “verdadeiro”, um homem que pôde, momentaneamente no tempo, correr como homens livres correram, mas, ainda assim, não tanto quanto ele, preso a uma maca, conseguiu correr. O Escafandro e a Borboleta é, acima de tudo, sobre a liberdade do homem.

A história real do editor da revista francesa Elle, que, após sofrer de um derrame, vê a sua vida tornar-se um horror, tendo que reaprender a se comunicar – e principalmente, tendo que reaprender a viver -, ganha, portanto, uma versão cinematográfica magnífica, justamente por conseguir associar ao espectador sensações emuladas dessa verdade horrível, conduzindo uma narrativa sobre uma superação menos palpável, mas extremamente sensível. Por meio de suas fantasias privadas e a dedicação de pessoas próximas, o homem, aos poucos, tornava aquele escafandro, submerso nas profundezas de um mar de questionamentos solitários e sofríveis, em uma borboleta prestes a voar pelos céus. Tendo isso em vista, a relação entre os dois “personagens” que dão nome à obra é muito bem explorada em situações lindíssimas e visualmente impressionantes. O escafandro é o aprisionamento do corpo de Bauby, a “síndrome de encarceramento” citada diversas vezes no filme. Durante o seu aprisionamento, paralelamente e curiosamente, depois de muito tempo de negação e aceitação, o homem encontra-se com a liberdade do seu eu interior – a borboleta. Por meio da arte, um homem se liberta das amarras.

Durante o longa, em termos da transposição cinematográfica da história, as narrações feitas por esse personagem são progredidas melodiosamente, indo da negação da situação, resultando em dor, tristeza e autopiedade, à aceitação da mesma, permitindo o protagonista deixar-se levar pela serenidade das situações mundanas. As palavras que ecoam da obra são excepcionais, dignas de um texto exemplar. Seus devaneios, agora livres de aquisições materiais e pensamentos hedonistas, o permitem “escrever” sua obra máxima, o livro que dá nome ao filme. A progressão da história também pode ser percebida pela direção pesada, mas não menos sensível, de Julian Schnabel. Dada a imensa responsabilidade em adaptar uma história tão singular, o diretor opta por permitir ao público adentrar no consciente do homem, com planos subjetivos. A revelação da aparência de Bauby é orquestrada calmamente, indo da intimidade omitida à realidade distorcida por espelhos embaçados. Uma calma necessária para estarmos preparados emocionalmente, absorvidos pelo que realmente importa, quando visualizarmos a grosseira e infeliz existência física do homem – impacto que seria apenas sobre o choque visual, caso acontecesse o contrário.

Nessa orquestração, temos, na percepção da condição que o protagonista se encontra, logo no início da projeção, em tentativas falhas de comunicação, um dos momentos mais aterrorizantes do cinema, revelando mais méritos do trabalho de direção. O fotógrafo Janusz Kaminski, conciliando-se com Schnabel, aprofunda o olhar sensível, mas não anestético, do cineasta, ao utilizar de artifícios estéticos para reproduzir a visão de Jean, desde as lágrimas que impedem a clareza da visão esquerda até a desconfortante costura das pálpebras direitas do paciente. Os espetáculos mentais de Bauby também são transmitidos fantasticamente – frutos do trabalho impecável de fotografia. Aliás, o filme abre com a canção La Mer, original do francês Charles Trenet, que já apareceu em diversas obras cinematográficas, muitas destas em sua versão em inglês, Beyond the Sea. Além da música ser de uma beleza inestimável, o filme traz sequências grandiosas e significativas, que retomam a letra da canção, não deixando-a ser apenas um ornamento estético majestoso. Estamos diante de um retrato, no final das contas, de um homem destinado a reencontrar o mar apenas em seus sonhos mais apaixonantes, não menos reais por conta disso.

Outrossim, o roteiro, de autoria de Ronald Harwood, também contribui para com a visão que o diretor quis transpor, mostrando uma coordenação sensacional entre todos os campos desta produção cinematográfica, direcionada a uma visão única sobre a história, muito bem resolvida. Mesmo que alguns pensamentos e ideias caracterizantes do personagem principal sejam sugeridas através de diálogos, os realizadores não permitem que a exposição tome conta da verdade. A verdade é uma incógnita, indo muito além dos fatos. Sendo assim, por meio de flashbacks, somos ultimamente apresentados à personalidade arrogante e sexista do homem. Com a já citada câmera subjetiva, o público compartilha do sofrimento e impotência do editor, igualando-se a ele como ser humano e, portanto, apegando-se ao personagem, independente das atitudes cometidas e de sua mentalidade extremamente problemática, a qual ainda o permearia durante boa parte do enredo. É respeitável que o filme não se comprometa nem em santificar Jean-Dominique, nem em condená-lo. O longa compromete-se, na realidade, em apenas apresentar o retrato de um homem; um artista, passível de erros, extremo sofrimento e até mesmo redenção.

Além disso, não sendo a visão sobre Bauby suficiente o bastante para mover uma obra de arte, Harwood ainda faz um serviço brilhante em entregar, no texto, alguns personagens coadjuvantes de peso, significativos para o conjunto final. Dentro desses casos, é papel de Henriette Durand, interpretada pela talentosíssima Marie-Josée Croze, intermediar a nova experiência de Bauby com a comunicação humana. Henriette é fonoaudióloga e, junto com uma tabela composta por várias letras, tem a difícil e ingrata tarefa de reestruturar a capacidade de interação de Jean-Dominique com o mundo afora. A primeira frase formada pelo homem, com o auxílio de uma tabela alfabética, é conduzida em agonia, tanto por ela quanto por ele. Quando o espectador acaba por deduzir o resto da sentença, a personagem de Marie-Josée também o deduz, chegando a desabar emocionalmente. A direção, de início, vai permitindo cada letra pronunciada ser pesada ao espectador, até que a repetição não seja mais necessária, o que não permite as cenas, mesmo passíveis de cansaço, sem grandes dificuldades, pela sua natureza estática, tornarem-se enfadonhas de verdade. Muito pelo contrário, somos envolvidos dramaticamente por completo.

Ademais, Céline Desmoulins (Emmanuelle Seigner) tem um conflito interessante envolvendo a personalidade “mulherenga” de Bauby. O roteiro permite que o arco entre eles seja bem desenvolvido, levando-o a uma conclusão revoltante, porém realista. Colaborando com o desenvolvimento da relação entre Bauby e Céline, caminhando pelo passado e pelo presente, também encontra-se o pai do editor, interpretado pelo veterano Max von Sydow, o qual fornece, junto com o seu filho, dois dos diálogos mais honestos do filme. O primeiro, bastante cru, é condizente com as desavenças do passado do editor. Já o segundo é tão dramaticamente profundo quanto narrativamente intenso, rendendo à obra sua cena mais destrutiva e emocionante, quase impossível de ser absorvida pelo espectador sem provocar arrepios e, possivelmente, até lágrimas. O Escafandro e a Borboleta não é uma realização cinematográfica que termina esquecendo dos seus coadjuvantes ao retratar, construir e desconstruir o seu protagonista, os usando, entretanto, como propulsores para a criação discursiva que está sendo feita com extremo cuidado, transformando-os, portanto, em mais importantes do que meras alavancas narrativas.

O homem, para finalizar, extremamente longe de ser onipresente, com os flashbacks e as narrações, consegue, mesmo assim, se colocar em todos os lugares imagináveis – e inimagináveis. Mathieu Amalric tem o árduo trabalho de conduzir a performance corporal de uma pessoa que sofreu um derrame. O filme é um sucesso na transposição da realidade de Jean-Dominique, então, a interpretação do ator, paralelamente, também é um sucesso, pois um lado depende do outro. O intérprete consegue, em última instância, evocar naturalidade de tudo isso, dessa “onipresença”, sem tornar a obra imaginativa demais. Os devaneios, de certa forma, acabam tornando-se tão verdadeiros quanto a própria verdade em si. O Escafandro e a Borboleta, em razão disso, é uma extraordinária alegoria sobre liberdade, paz e redenção, baseada na vida real de um homem que soube, em seus momentos mais difíceis, viver como muitos nunca viverão. Com interpretações incríveis, um roteiro monumental e uma direção brilhante, o resultado não poderia ser menos que tão excepcional quanto a obra original, composta por 200.000 piscadas, 139 páginas e um mar de histórias lindíssimas, muitas delas vividas sobre uma mera cadeira de rodas.

O Escafandro e a Borboleta (Le scaphandre et le papillon) — França/ EUA, 2007
Direção: Julian Schnabel
Roteiro: Ronald Harwood
Elenco: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Patrick Chesnais, Max von Sydow
Duração: 112 min.

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