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Crítica | O Eternauta – 1ª Temporada

Inverno de sangue em Buenos Aires.

por Ritter Fan
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Baseada na clássica HQ homônima de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López publicada originalmente em um semanário argentino entre 1957 e 1959, O Eternauta é uma bem-vinda produção desenvolvida e dirigida por Bruno Stagnaro e estrelada por Ricardo Darín que, em seis episódios, mostra como é importante saber o verdadeiro significado da palavra adaptação, fugindo de inúteis transliterações que sequer conseguem compreender que a mera mudança de mídia já exige alterações das mais diversas naturezas. Mas é importante deixar claro que não estamos diante de uma minissérie e os seis episódios que foram ao ar cobrem, mais ou menos, o que podemos chamar da primeira parte dos quadrinhos originais, ou seja, o início do apocalipse visto a partir do ponto de vista de Juan Salvo (Darín), sua família e amigos, que sobrevivem à nevasca tóxica que é apenas o primeiro estágio de algo muito mais amplo.

A verdadeira grande alteração promovida pela adaptação de Stagnaro foi sua escolha em trazer a narrativa para o tempo presente, evitando os gastos normalmente bem mais altos de uma produção de época. Essa modificação em nada afeta esse começo da série e, se considerarmos apenas o primeiro terço da HQ, em nada influencia na profunda crítica que Oesterheld e López destilaram contra ditaduras, golpes militares e a interferência externa na soberania de outros países. No entanto, a atualização de O Eternauta arrisca esvaziar esse teor político na medida em que a história continue, já que o contexto da época em que os quadrinhos foram escritos inexiste aqui e a transformação de Salvo em um veterano da Guerra das Malvinas não me parece ter a capacidade de trazer esse assunto à tona e nem funciona bem dentro da narrativa, pois não agrega muita coisa. No entanto, claro, estou me adiantando a uma conversa futura que, como disse no início do presente parágrafo, no momento não é relevante, pois nem no começo da HQ isso era efetivamente sensível.

Curiosamente, meu ponto de lamento na crítica que escrevi sobre a HQ, ou seja, a falta de exploração do início do fim do mundo como o conhecemos com Salvo, família e amigos isolados em sua casa no subúrbio de Buenos Aires, é o ponto mais forte desta primeira temporada, como se Stagnaro tivesse percebido o potencial inexplorado dessa premissa e tratado de trabalhá-la com afinco. Sei que, hoje em dia, essa base narrativa está longe – muito longe! – de ser novidade considerando o tanto de obras pós apocalípticas que estão disponíveis por aí, mas tenho para mim que Stagnaro estava bem ciente disso e fez algo corajoso: reduziu as caracterizações e sequências de ação ao básico humano, extirpando traços de heroísmo e focando em uma abordagem genuína, na base do “doa a quem doer”, por mais que porventura viremos o nariz para ela, dizendo para nós mesmos que “nunca faríamos algo assim ou assado” em uma reação natural que tende a achar que somos melhores do que realmente somos.

O Juan Salvo de Darín é um homem calado, introspectivo e até antipático, cuja maior qualidade é ser um bom atirador, algo explicado por ter sido soldado, mas que poderia ter facilmente qualquer outro tipo de lógica por trás e que, quando a nevasca mortal começa a cair em uma Bueno Aires completamente nas sombras depois que um pulso eletromagnético acabou com toda a eletricidade e eletrônicos, tem apenas um único pensamento, que é achar sua filha Clara (Mora Fisz) que ele acha que pode estar com sua ex-esposa Elena (Carla Peterson), o que o leva a basicamente ignorar tudo e todos ao seu redor imediato para sair de onde está com um traje hermético que, na HQ original, é uma roupa de mergulho modificada e que se tornou símbolo da resistência argentina contra a opressão, mas que, aqui, é uma máscara de gás com um capuz plástico, casaco, calças, luvas e botas, algo mais “mundano”, por assim dizer. Seus amigos também ficam atônitos e o principal deles, Alfredo “Tano” Favalli (César Troncoso), dono da casa onde estavam jogando o truco semanal deles, torna-se basicamente um ditador, preocupado em ilhar-se completamente do mundo exterior, não se importando com mais ninguém que não esteja em seu imediato círculo de relações, isso se a pessoa concordar com ele, claro.

Salvo e Favalli não são os únicos com traços de egoísmo, aliás, pois essa “qualidade” passa a permear, de uma maneira ou de outra, todos os sobreviventes do genocídio gelado ocasionado por forças que todos ignoram. Apenas as mulheres do elenco olham o mundo de maneira um pouco menos binária, algo que os machistas de plantão interpretarão como ataques pessoais à sua “condição de homem”, mas que apenas reflete a realidade do cotidiano, em que a temperança feminina é capaz de mover mundos e atenuar conflitos. Esse olhar pessimista de Stagnaro – que, na verdade, é realista – funciona muito bem para sintetizar sua própria versão da HQ original. O showrunner opõe a visão coletivista e positiva de Oesterheld ao egoísmo de um mundo moderno em que a tendência é todo mundo olhar para o seu próprio umbigo enquanto digita impropérios por bobagens em redes sociais. O Eternauta, pelo menos nessa primeira temporada, é uma série que não faz nenhum herói despontar, com qualquer ato que possa ter esse verniz vindo apenas a muito custo.

Além disso, os roteiros conseguem cultivar bem o mistério. O que, afinal, está acontecendo? Essa pergunta fica quase que completamente sem resposta até o final, deixando até mesmo a lógica por trás do próprio título da série para um segundo momento, ainda que polvilhando uma breve pista no encerramento do sexto episódio. Diria que essa é outra ousadia de Stagnaro, que evita entregar de bandeja tudo o que está por trás dos acontecimentos, negando aos mais afobados aquela “recompensa” fácil. Claro, há situações suficientes para qualquer espectador minimamente experiente criar um quadro razoavelmente claro do que é mostrado, mas só mesmo tendo lido a HQ é que é possível entender de verdade tudo o que há para ser entendido, algo que, não tenho dúvida, será esclarecido na segunda e última temporada que já está em desenvolvimento.

Para além de atuações fechadas que constroem personagens desagradáveis e roteiros que mantêm os ases na manga, características que reputo muito positivas, há que se falar da direção de arte e da fotografia. María Battaglia e Julián Romera trabalharam as externas e os cenários construídos de maneira exemplar, sem criar nenhum tipo de solução de continuidade para a Bueno Aires silenciosa, vazia e assustadoramente branca que vemos ao longo de cinco dos seis episódios da temporada, com a neve prática caindo com tanta constância que chega até a dar aflição. A fotografia de Gastón Girod em locação é claustrofóbica e sombria mesmo durante o dia e em espaços abertos. A desesperança que ele transmite é constante e, quando ele trabalha em espaços fechados, nos sets da produção, ele não se furta em usar iluminação mínima para manter a imersão e o realismo de uma cidade apagada, mas sem, em momento algum – a não ser quando conveniente para a história – usar aquele tipo de escuro desnorteador que alguns diretores de fotografia confundem como arte. Até mesmo os cenários digitais, capturados por meio de filmagens reais projetadas em telas cobrindo o fundo de sets especialmente criados para isso (tecnologia recente, mas que se difundiu com velocidade alucinante), funcionam sem criar nenhum tipo de quebra de realismo.

E o que dizer dos efeitos especiais? Sem mencionar em que eles foram mais pesadamente utilizados para não dar spoilers, temos um bom exemplo de que menos é mais. O uso de computação gráfica – e, creio eu, alguns efeitos práticos aqui e ali – é parcimonioso, até mesmo cirúrgico, somente quando absolutamente inevitável para a narrativa caminhar da maneira que precisa caminhar para a HQ ganhar vida na telinha. Há peso e textura no que é mostrado, com a fusão com cenários físicos e com o elenco não fazendo feio mesmo quando comparada com blockbusters de centenas de milhões de dólares que, como de costume, prezam pelos fogos de artifício e se esquecem da história. Em O Eternauta, ao revés, história e as caracterizações vêm no lugar onde deviam vir, ou seja, na frente, com os fogos de artifício sendo empregados em seu favor, como algo a mais, e não em substituição ao que realmente importa, o que abre espaço para bons momentos de tensão e uma história visualmente hipnotizante.

Será interessante ver se a segunda temporada trará os comentários críticos da história original mais para a superfície, pois seria uma pena que, pela ausência de contexto histórico, isso ficasse perdido na adaptação. No entanto, mesmo que a intenção original de Oesterheld e López acabe invisível, que é, sinceramente, o que acho que acabará acontecendo, fato é que a versão audiovisual de O Eternauta ainda tem muito a oferecer, especialmente no que se refere à sua pegada seca, fria e desesperançosa sobre a natureza humana.

O Eternauta – 1ª Temporada (El Eternauta – Argentina, 2025)
Desenvolvimento: Bruno Stagnaro (baseado em quadrinhos de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López)
Direção: Bruno Stagnaro
Roteiro: Bruno Stagnaro, Ariel Staltari, Gabriel Stagnaro, María Alicia Garcias, Martín Wain
Elenco: Ricardo Darín, Carla Peterson, César Troncoso, Andrea Pietra, Ariel Staltari, Marcelo Subiotto, Mora Fisz, Claudio Martínez Bel, Orianna Cárdenas
Duração: 321 min. (oito episódios)

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