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Crítica | O Exercício do Poder

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

Há filmes que não são realizados para serem vistos por todo mundo pelo simples motivo de que uma boa parte do público irá se deparar com algo que não entende, e como resultado, destruirá o objeto visto só porque não foi capaz de decifrá-lo, uma postura já prevista por Ortega y Gasset em seu livro A Desumanização da Arte.

O caso dos filmes políticos é um bom exemplo dessa categoria de obras que para muitas pessoas é um desfile de símbolos numa passarela de enigmas. O grande problema é que nesse ponto entramos naquele território em que algumas pessoas que vão ao cinema acreditam que todo filme deve ser fácil e ralo, com citações explicadas e narrativa livre de conceitos incomuns, erudição e complexidade. À parte a questão subjetiva, esses espectadores jamais sabem explicar os motivos pelos quais não gostaram do filme, sinal maior de que não houve compreensão alguma, daí o desgosto em relação a obras que fogem daquele terreno que lhes é familiar, o terreno do pleno e vazio espetáculo cinematográfico.

O Exercício do Poder (2011), filme escrito e dirigido por Pierre Schöller é um bom representante da ala de obras odiadas por maus entendedores. A película acompanha a via crucis do Ministro dos Transportes da França em sua luta contra a privatização das ferrovias e os jogos políticos que se armam em torno dele desde as ordens do presidente da República até as ambições do Secretário de Estado. A burocracia e os arcaicos meios legais confundem-se com as necessidades mais urgentes do país, e mesmo para se tornarem legítimas, precisam passar pelo crivo de decisões feitas a portas fechadas por um grupo pequeno de pessoas. O resultado que virá para a população será uma ordem de ação com apenas três palavras: neutralizar, neutralizar, neutralizar.

A abertura da obra é realizada através de um sonho. Desde esse momento, percebemos o brilhantismo da música do estreante Philippe Schoeller e da fotografia do veterano Julien Hirsh, que mais uma vez, apresenta um trabalho delicado e muito bem orquestrado, trazendo colorações metálicas e duras para os grandes planos de forte representação política, e luzes difusas e até aconchegantes, quentes, em interiores em festa ou reuniões políticas de máxima importância. O departamento de arte adota a linha do bom gosto burguês e capitalista contemporâneo num amálgama de estilos artísticos de décor que precisa adequar-se ao mundo objetivo numa arquitetura de não data desse século, mas cada escritório de um ministério ou cada residência mostrada acaba tendo o seu estilo próprio, que de maneira acertada, ajudam a definir a personalidade dos seus ocupantes.

No sonho de abertura, Bertran Saint-Jean, o Ministro dos Transportes, sonha com indivíduos encapuzados arrumando seu escritório no Ministério como num ritual macabro. Uma mulher nua entra pela porta, lentamente. Sua beleza contrasta com a rudeza e feiura do crocodilo que a espreita em um canto da sala. Eles se olham, e de alguma forma, se comunicam. Estranhamente, há um quê de conotação sexual nessa sequência. É então que o crocodilo abre a boca e a mulher voluntariamente se projeta para dentro do animal, sendo engolida por ele.

Poderíamos aqui evocar a teoria lacaniana da “boca do crocodilo”, que traz à tona, em linhas gerais, o ponto de independência do filho em relação à sua mãe. A escolha é sempre do filho: ou ele se torna independente do seio de sua genitora, reconhecendo sua incompletude e lidando com ela, ou é engolido pela “boca do jacaré”, tornando-se dependente e sem unidade. Por outro lado, é lícito que citemos o símbolo de força, voracidade, duplicidade e hipocrisia que o jacaré representa. Unindo os dois lados da moeda, temos no sonho de abertura do filme, uma metáfora de toda a corrida política que se estenderá por quase duas horas na tela.

Pierre Schöller guia a história com a magnitude de um mestre. Em primeiro lugar, sua direção de atores é pontualíssima, atingindo todos os aspectos dos que aparecem em cena. O resultado disso é um elenco inteiro em atuações admiráveis, feito raro em tempos canastrice, como os nossos. Em segundo lugar, seu roteiro é tão bem escrito, que consegue formar uma unidade socialmente cíclica e quase perfeita, sofrendo apenas os mínimos males de uma história com tantas faces para ganhar espaço. Por fim, a falsa inconclusão do filme nos fornece dois caminhos de interpretação, mas o destaque para o Ministro simbolicamente devorado pelo jacaré do Estado é uma marca que nos acompanha mesmo após os créditos finais.

O Exercício do Poder é um exemplo fascinante de adaptação ao meio e de funcionamento da política. Num caminho próximo ao que George Clooney trilhou em Tudo Pelo Poder (2011), Pierre Schöller não se furta em denunciar apresentando acontecimentos e nunca interferindo diretamente com conceitos literais jogados na tela. A diferença entre os dois filmes está no extremo apuro estético da fita francesa, que termina por selar o destino da obra: com um tema considerado intragável por muita gente, o filme ainda traz música minimalista e escrupulosamente usada, além de uma montagem que alterna momentos de muita rapidez e de languidez plena (com uma cena digna de ser considerada genial: a ligação móvel entre a pista onde acontece o acidente com o carro de Bertrand e o seu escritório). O Exercício do Poder é sim um filme para poucos, mas estes poucos que o virem certamente terão uma experiência devoradora, algo ainda muito maior que um “simples” exercício de predadorismo político.

O Exercício do Poder (L’exercice de l’État) – França, Bélgica, 2012
Direção: Pierre Schoeller
Roteiro: Pierre Schoeller
Elenco: Olivier Gourmet, Michel Blanc, Zabou Breitman, Laurent Stocker, Sylvain Deblé, Didier Bezace, Jacques Boudet, François Chattot, Gaëtan Vassart, Arly Jover, Eric Naggar, Anne Azoulay
Duração: 115 min.

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