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Crítica | O Exército do Extermínio

por Michel Gutwilen
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Dez anos depois de Noite dos Mortos Vivos (1968), o diretor George A. Romero realizou a sequência direta Despertar dos Mortos (1978), mas reside no intervalo entre as duas obras — além de mais três filmes — uma espécie de sequência espiritual do primeira, que é O Exército do Extermínio (1973). Aliás, a palavra ideal que se esteja procurando aqui talvez seja “expansão”, pois é como se Romero (que também é roteirista) repetisse o mesmo tipo de experimento social que realizara anteriormente, só que a partir de um escopo muito mais amplo. Não se trata mais de pessoas sitiadas em uma casa, mas sim de uma população presa em uma cidade. Porém, independente da abrangência, o ponto de convergência presente nos dois projetos que mais interessa ao realizador é explorar o desdobramento das relações humanas a partir de situações limítrofes, de desespero e confinamento, de modo a desnudar as falsas camadas civilizadas da sociedade. 

Por outro lado, há pontos de divergência entre as duas obras. Enquanto Noite dos Mortos Vivos também se desdobra tematicamente para questões raciais — inclusive, com um dos finais mais assombrosos de todos os tempos — poderia se apontar como ponto de interesse em O Exército do Extermínio a problemática do Estado de Exceção, o que já fica bem claro na primorosa sequência que mostra diversas casas de família sendo violadas pelos militares. O terror reside no medo de sair de casa e ser morto pelo Exército, de modo que os cidadãos não infectados precisam criar uma resistência rebelde para tentar fugir da cidade. 

De mesmo modo, ainda que em ambos os filmes se chegue a conclusão de que a principal ameaça ao ser humano é ele mesmo, não há mais o mundo fantástico de Noite dos Mortos Vivos com zumbis, fazendo com que os humanos se abriguem em uma casa. Desta vez, há um vírus “raivoso” que se espalhou pela população de uma cidade e deve ser contido pelo Exército para não escapar pelo resto do continente. Ou seja, se no primeiro filme o ser humano está ameaçado e o isolamento é uma questão de autoimposição para a sua própria proteção, em O Exército do Extermínio ele é visto como a ameaça e perde sua liberdade individual por determinação do Estado, que domina a cidade. 

Assim, o que mais interessa a Romero é jogar com a inversão de papéis sobre quem seria o verdadeiro vilão da trama. Os monstros não são os humanos infectados, mas sim os próprios militares. Até por isso, a narrativa é marcada por ambiguidades em sua encenação, com as sequências que envolvem os assassinatos dos cidadãos da cidade nunca deixando claro se eles são de fato infectados ou se seriam apenas pessoas querendo fugir da repressão militar. A consequência disso é a instauração de um constante clima de paranoia, já que o Exército não consegue mais diferenciar quem é ameaça ou não, aniquilando todos que passam pela sua frente sem piedade.

Ainda que me pareça exagero falar que o filme é uma sátira, trata-se de um exercício que flerta muitas vezes irônico, tal como em outras obras da filmografia do diretor, com a burocracia sendo o principal alvo diante de sua acidez. Afinal, boa parte do tempo se passa nas salas do comando militar, acompanhando as tomadas de decisões precipitadas daqueles homens de alta patente sobre o lockdown da cidade, com maior ênfase em evidenciar o despreparo despreparo destes.

Ainda sobre a presença do Exército ser tratada de forma irônica, interessante aspecto de se ressaltar envolve a presença de um leimotif recorrente pela trilha sonora, que são os tambores tipicamente militaristas, acentuando e exagerando a presença militar por todas as cenas. Além disso, sua caracterização também vale comentário, com o figurino se afastando da típica customização da farda verde, substituindo-a por um roupão branco e uma máscara de gás, como forma de proteção ao vírus circulando pela cidade. Em um primeiro lugar, a predominância do branco nas cenas acompanha visualmente o tom burocrático e asséptico do filme. Em segundo, sempre quando há algum derramamento de sangue, a cor vermelha deste fica em evidência quando em contato com o branco, em uma plasticidade visual que dá um maior peso dramático nas cenas em que há derramamento de sangue inocente por parte dos militares. Além disso, o fato dos militares estarem mascarados na maior parte do tempo contribui para sua simbólica desumanização, aproximando-lhes mais de zumbis que apenas cumprem ordens do que seres individualizados capazes de pensar.

É no meio deste caos que reside a estruturação narrativa de O Exército do Extermínio, marcada por elipses e registrada por uma câmera instável próxima da ação. Diante desta total paranoia e a supressão de direitos, passam a surgir os conflitos internos entre os sobreviventes da cidade, que cada vez vão se comportando mais instintivamente. No fim, o experimento de Romero se conclui quando todos os lados do conflito se mostram perdidos e irracionais no meio de toda a confusão criada, a ponto de não se saber mais quem é quem. A grande ironia final é quando um dos personagens rebeldes é morto, confundido por outros rebeldes, justamente por estar vestindo as vestes militares para tentar fugir da cidade. 

O Exército do Extermínio (The Crazies, 1973) — EUA
Direção: George A. Romero
Roteiro: George A. Romero
Elenco: Lane Carroll, W.G. McMillan, Harold Wayne Jones, Lloyd Hollar, Lynn Lowry, Richard Liberty
Duração: 103 mins.

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