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Crítica | O Falcão Maltês, de Dashiell Hammett

O rastro de sangue de uma relíquia.

por Luiz Santiago
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Assim como aconteceu nos dois primeiros livros de Dashiell Hammett (Seara Vermelha e A Estranha Maldição) O Falcão Maltês foi originalmente publicado de forma serializada na revista pulp Black Mask, em 1929, ganhando sua edição em livro no ano seguinte, pela Alfred A. Knopf, editora que, igualmente, publicou as duas obras anteriores do autor. Dos cinco romances policiais que Dashiell Hammett escreveu, The Maltese Falcon é certamente o mais conhecido, e isso tem muito a ver com a famosa adaptação cinematográfica feita da obra para o cinema, aqui no Brasil conhecida como Relíquia Macabra (1941), sob direção de John Huston e com Humphrey Bogart no papel principal.

Nesta aventura, não estamos mais diante do enigmático Continental Op, mas de um detetive nomeado e, até certo ponto, bem explorado nos moldes da ficção policial hard-boiled. A força com que o autor constrói o seu detetive-herói é tamanha, que Sam Spade, mesmo aparecendo apenas neste romance e em mais três contos pouco conhecidos de Hammett, tornou-se um verdadeiro personagem-estereótipo para a construção do detetive-padrão do cinema noir, o que influenciou bastante a literatura policial nos Estados Unidos durante as décadas de 1930 e 1940. Sabe-que de Philip Marlowe, por exemplo, o icônico personagem de Raymond Chandler (criado em O Sono Eterno, de 1939), foi fortemente influenciado por Sam Spade.

Ao lado de Miles Archer, Spade toca um escritório de detetives particulares em São Francisco, e essa história começa, como era de se esperar, com a entrada de uma femme fatale em cena, a “senhorita Wonderley”, que desesperada e inocentemente, pede para que os detetives investiguem um homem chamado Floyd Thursby. O motivo? Este indivíduo, aparentemente pouco elogiável, fugiu com a irmã da “senhorita Wonderley”, e esta não cabe em si de preocupação. Para um leitor que conhece a clássica literatura policial americana ou que tenha visto alguns filmes noir, entende que todo o mimo e os choramingos da personagem escondem algo, e o livro não nos poupa surpresas, trabalhando bastante com contrastes comportamentais e uma porção de estereótipos muitas vezes colocados de forma verdadeiramente preconceituosa, principalmente em relação ao homem gay no meio dos que buscam o falcão maltês.

A narrativa em terceira pessoa é totalmente descritiva, fazendo com que as ações dos personagens sejam vasculhadas, mas não os seus pensamentos ou intuições. Além dessa precisão descritiva, os diálogos são escritos de forma primorosa, num modelo bastante realista quanto ao ritmo, ao vocabulário e ao critério de interação entre as pessoas numa conversa, especialmente nas cenas onde temos alguém alterado, muito preocupado ou ameaçando o outro. Nesses momentos é que se mostra ainda mais a frieza de Sam Spade, além de sua coragem irresponsável, sua insistência em buscar aquilo que acha certo (mesmo sabendo que pode cavar problemas ainda maiores) e seu modo de agir, sempre com um olhar estranhamente positivo, a despeito de as coisas ao seu redor não irem necessariamente muito bem.

A relíquia que dá título ao livro demora muito para aparecer de verdade, e nesse ponto a narrativa até me trouxe nuances de A Estranha Maldição, no que diz respeito ao elemento quase mitológico e supersticioso diante do tal objeto. Hammett  brinca com um fato histórico que em torno do falcão, que na realidade não era uma estatueta encravada de joias, mas um falcão de verdade que A Ordem de Malta ou Cavaleiros Hospitalários (oficialmente chamada de Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta) precisava pagar, dentre outras obrigações, a Carlos V (rei da Espanha), por este ter cedido as ilhas de Malta e Gozo e a cidade de Trípoli aos Hospitalários, após serem derrotados e expulsos de Rodes pelo sultão otomano Solimão (ou Suleiman), o Magnífico. O enfeite ficcional que o autor dá a esse fato histórico torna a busca muito mais charmosa e interessante, que continua, inclusive, para além das páginas dessa aventura.

O leitor termina a leitura de O Falcão Maltês com a sensação de estar preso num ambiente cada vez mais doentio, perigoso e cheio de pessoas más. É uma mistura de fatalismo com determinismo que engata num loop, basta comparar a cena de encerramento da obra com a do começo. Trata-se de uma história cheia de reviravoltas, cheia de pistas falsas e acusações para todos os lados, com o leitor tendo a possibilidade de apostar em algumas pessoas antes de realmente descobrir quem é que está por trás de tudo. Certos tratamentos aqui me incomodaram um pouco, especialmente dos homens em relação às mulheres, mas isso não serviu para fazer com que a obra diminuísse de qualidade para mim, dado o contexto de escrita do livro. O que acabou me afastando um pouco foi a “resolução que não se resolve“. Se, por um lado, isso dá a sensação de que as pessoas assassinadas morreram em vão e mostra o quanto a ganância, a paranoia e a maldade são sem limites, por outro, me pareceu faltar algo no preenchimento desse buraco gerado pela caça ao falcão maltês. Continua sendo um bom final, pelo que representa, mas não sem uma sensação de que a jornada foi… em vão.

O Falcão Maltês (The Maltese Falcon) — EUA, 1929
Autor: Dashiell Hammett
Publicação original: Black Mask (de forma seriada, em 1929)
Publicação original em livro: Alfred A. Knopf (1930)
Edição lida para esta crítica: Companhia das Letras (2001)
Tradução: Rubens Figueiredo
296 páginas

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