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Crítica | O Filho de Mil Homens

Adaptando o impossível.

por Ismael Vilela
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Se existe uma premissa que sustenta a vasta e complexa arquitetura literária de Valter Hugo Mãe, é a noção de que o todo ressoa com uma magnitude invariavelmente superior à soma de suas partes micro. É nesta dialética entre o fragmento e a totalidade que o diretor Daniel Rezende alicerça a sua adaptação cinematográfica de O Filho de Mil Homens, um filme que, paradoxalmente, encontra sua grandiosidade ao aceitar a imperfeição de suas peças individuais para construir um mosaico de ética e alteridade. Ao transpor para a tela a densidade poética de Mãe, Rezende não apenas traduz palavras em imagens, mas assume o risco de uma narrativa que opera em um registro de sensibilidade no qual o exagero não é um defeito, mas uma ferramenta estética de imersão.

A linguagem cinematográfica adotada por Daniel Rezende no longa revela-se como o seu exercício mais arriscado e, simultaneamente, mais seguro em termos de convenções visuais. Ressalto, de partida, a utilização de supostas muletas estéticas conhecidas do grande público e da indústria, como a paleta de cores que remete ao Teal and Orange, conferindo à fotografia uma segurança cromática que dialoga com o cinema comercial contemporâneo. Contudo, essa escolha, longe de ser uma limitação, serve como alicerce para que a poesia visual se manifeste. A fotografia, inegavelmente poética, não busca o extraordinário pelo choque, mas pela constância de uma beleza melancólica que envolve o espectador. O desempenho do elenco, encabeçado pela entrega visceral – simplesmente por interpretar com preciosismo um homem que pouco fala – de Rodrigo Santoro, tende propositalmente ao exagero, uma decisão de direção que espelha a própria natureza da prosa de Valter Hugo Mãe. Se o leitor considera o livro O Filho de Mil Homens uma obra de hipérboles sentimentais e existencialistas, o filme abraça essa característica sem pudor, tornando-se uma extensão fidedigna da alma do texto original.

O que se observa na tela é uma fidelidade extrema, não apenas ao enredo, mas à atmosfera. As palavras escritas por Valter Hugo Mãe, carregadas de uma dor lírica, foram traduzidas para a cinematografia com uma competência rara. As alterações realizadas na transição da obra literária para a obra fílmica são executadas com precisão cirúrgica, demonstrando que Daniel Rezende compreende que adaptar não é copiar, mas transmutar. O narrador literário, pontual e onisciente, cede espaço a uma suavidade narrativa necessária para o fluxo das imagens. Aqui reside, talvez, a maior e mais sofisticada diferença entre o livro e o filme: a independência dos plot twists. Enquanto o livro de Mãe instiga o leitor através de reviravoltas de gênero e ferramentas de surpresa, o filme de Rezende subverte essa lógica ao retirar a dependência dessas viradas bruscas. É um filme que independe do choque para sustentar seu argumento emocional.

Ao abdicar da muleta do plot twist como motor principal, Daniel Rezende altera a perspectiva da experiência, permitindo que a obra cinematográfica respire por meio de conceitos e metáforas. Se Valter Hugo Mãe focava no exercício de gênero para prender a atenção, Rezende se arrisca em uma sofisticação contemplativa. O filme, para não dizer que é uma tradução exata, revela-se muito mais poético e conceitual em sua execução visual do que a própria estrutura narrativa do texto base sugeriria. A narrativa organiza-se em torno de um conceito de poesia visual onde o que comove não é a surpresa do destino, mas a inevitabilidade do afeto.

Olhando para a estrutura narrativa, percebe-se um emaranhado de histórias entrecruzadas que, isoladamente, poderiam parecer rasas ou não aprofundadas. No livro, Mãe liga esses pontos por meio das revelações surpreendentes; no filme, através de um exercício de ética e correção de falhas – não que estes não fossem presentes no livro, mas não eram a pedra de toque para a narrativa. 

Assume-se, corajosamente, que o livro é imperfeito, que o filme é imperfeito e que os personagens, em suas dores e solidões, são imperfeitos. A perfeição, portanto, reside apenas na junção dessas imperfeições. O produto final é de uma sofisticação humanista, feito com um carinho palpável nas mãos de uma decupagem cuidadosa e detalhista. A emoção que transborda, principalmente no terço final da projeção, não advém de um sentimentalismo barato ou de uma narrativa apelativa, mas da constatação de que aquelas narrativas dolorosas e propositalmente rasas compõem um todo profundo. A mensagem é o todo, e o todo deve ser, e é, avassalador.

A direção de atores merece um destaque particular dentro dessa engrenagem. As expressões dolorosas dos personagens, capturadas pela lente de Rezende, são fundamentais para essa tradução de mídias. A dor que no livro era verbo, no filme torna-se carne e olhar. A imagem é descrita, metaforicamente e visualmente, como um grito ao mar. É impossível para o espectador não se deixar levar pela comoção, enchendo os olhos de lágrimas diante desse conjunto de falhas que encontram, na coletividade, um conserto. E esse conserto é, a um só tempo, doloroso e amoroso. Rodrigo Santoro, Johnny Massaro e Rebeca Jamir não interpretam apenas indivíduos, mas arquétipos de uma solidão que busca desesperadamente o outro.

A narrativa do filme organiza-se, assim, em torno da poesia como agente de transformação. O que comove é a poesia intrínseca à imagem, e não a manipulação emocional barata. A obra cinematográfica reafirma a potência do texto original, consolidando O Filho de Mil Homens como uma das melhores obras da contemporaneidade, agora em duas linguagens distintas. É um filme que dialoga diretamente com o fã de Valter Hugo Mãe, mas que expande seu alcance para qualquer espectador disposto a um exercício de alteridade, empatia, coletividade e quebra de preconceitos. O amor, em suas múltiplas formas, é o fio condutor que costura essas vidas díspares.

Em última análise, a adaptação de Daniel Rezende funciona porque entende que a beleza não está na ausência de defeitos, mas na harmonia criada entre peças quebradas. Ao remover a dependência das reviravoltas literárias, o diretor expõe o esqueleto emocional da história, entregando um filme que é completo tal qual o livro, mas que caminha com as próprias pernas. É uma obra sobre o coletivo, sobre como o peso das peças micro só é verdadeiramente compreendido e validado quando se olha para o todo. O filme vem para isso: para provar que a imperfeição compartilhada é a forma mais pura de perfeição humana. Daniel Rezende assina uma obra que, embora se utilize de seguranças estéticas, arrisca-se no terreno mais perigoso de todos: o da sinceridade emocional absoluta.

O Filho de Mil Homens (Idem) – Brasil, 2025
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Daniel Rezende (baseado na obra de Valter Hugo Mãe)
Elenco: Rodrigo Santoro, Johnny Massaro, Rebeca Jamir, Miguel Martines, Marcello Escorel, Lívia Silva, Antonio Haddad, Juliana Caldas, Inez Viana, Tuna Dwek, Grace Passô, Zezé Motta
Duração: 127 min

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