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Crítica | O Filme da Escritora

O filme de virada.

por Gabriel Zupiroli
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Em dado momento da filmografia de Hong Sang-soo há uma espécie de corte formal e metodológico relativo à sua encenação que, indubitavelmente, inaugura rumos sobre os quais seus filmes caminham em construção cênica. Desde, talvez, Certo Agora, Errado Antes (2015),  Na Praia à Noite Sozinha (2017) e A Câmera de Claire (2017) é possível visualizar uma tendência pulsante que se desvia da articulação narrativa e ficcional mais estabelecida na carreira o diretor – e que vinha desde seus primeiros filmes – para se apegar a um recorte cuja proposta da encenação reside com muito mais força em aspectos laterais e “particulares”. Laterais por se encontrarem paralelos ao campo central do interesse tanto de seus filmes anteriores, quanto de um fazer cinematográfico mais “clássico”, e particulares por remeterem diretamente a um “desinteresse” próprio de Sang-soo em relação a esses aspectos laterais que se traduz, na verdade, em um interesse genuíno nos seus próprios elementos compartimentalizados em tela. Em suma, trata-se de uma tendência que se desvia da formalização tradicional do discurso em narrativa para, paralelamente, debruçar-se sobre micro-narrativas potenciais que esgotam a tela através de códigos sutis, como gestos, detalhes conversacionais e, ao fim, a própria cotidianidade rotineira que abarca todo aquele conjunto de seres se relacionando.

O Filme da Escritora, aproveitando toda essa carga construída pelo diretor há quase dez anos, é uma obra que se localiza de maneira simultaneamente já tradicional neste espaço, mas ao mesmo tempo, particular. Trata-se de um filme paradoxal, em certo sentido, cuja natureza imagética sempre transita entre as margens do campo discursivo estabelecido por Sang-soo. Um filme que, de certa forma, carrega em sua unidade justamente essa potência do particular, do incômodo, do texto subversivo. Ao longo da narrativa, acompanhamos uma escritora que vai a uma cidade do interior para visitar uma velha amiga, agora dona de livraria. Enquanto lida com certas tensões especulativas relativas ao(s) passado(s), trava contato com uma atriz mais jovem, que já admirava e que, descobre, também nutre admiração por sua obra. Nesse ínterim, ambas se deslocam pela cidade e pela sua própria recém-inaugurada relação em função de não apenas firmarem esse contato, mas até mesmo realizarem uma nova obra: um filme que a escritora, esse arauto do discurso escrito, quer dirigir com a atriz, um curta-metragem independente e cuja idealização da artista ressoa, muitas vezes, um próprio comentário de Sang-soo sobre sua obra.

E é nesse entremeio de idas e vindas não apenas das duas personagens, mas dos próprios coadjuvantes que as cercam – porque se há uma sectarização bem clara nesse filme, é a de colocar os protagonistas diretamente em seu centro, como astros orbitados por estrelas -, que algumas linhas discursivas se sobrepõem e procuram se complementar, como em uma luta desesperada. Isso porque, ao mesmo tempo em que O Filme da Escritora é uma obra que olha para si mesma, para a própria simplicidade desinteressada de sua narrativa, também joga uma perspectiva muito forte sobre a própria obra geral do diretor. É como se, ainda que Sang-soo nunca tivesse deixado de ensaiar autoficções possíveis (especialmente em Certo Agora, Errado Antes), com um desvio claro em relação aos limites da ficção e da verdade, esse filme simbolizasse uma espécie de cristalização do próprio comentário metalinguístico. Isso porque – e por mais que uma obra sempre traga uma carga interna cujos elementos devem conduzir a si mesmos, é inegável que ela se insere em uma discursividade social e cultural que atravessa o próprio espaço e tempo – a encenação desse filme se aproveita desse rigor formal de seu cinema ao máximo, respeitando suas novas bases estabelecidas e trazendo elas à dança lúdica da tela, para, pela primeira vez desde essa “virada epistemológica”, virar tudo do avesso.

Assim, não apenas a escritora – interpretada por Lee Hye-young – e a atriz – sem sombra de dúvida interpretada por Kim Min-hee – estão em busca de localizar na outridade um espelhamento de si, na tentativa de estabelecer laços (laços esses, vale lembrar, sempre muito frágeis e agridoces na obra de Sang-soo) em função da deslocalização nesse mundo, mas também elas mesmas refletem a obra e a Obra, num sentido totalizante. O fazer fílmico, e mais profundamente o desejo do fazer fílmico, é o que lapida toda aquela posição de si como sujeitos no universo estabelecido, é o que direciona a relação para um nível de aproximação, uma espécie de densidade. Certos corpos nunca são mostrados – como o marido da atriz -, mas sua presença existe de maneira avassaladora na obra. E a potência desse esboço de relação completamente desprovido de um interesse genuíno é o que move as peças do tabuleiro por sua própria descentralização.

Ou seja, o flerte que Sang-soo tem com o comentário, com o filme-estudo, adquire aqui uma camada dupla na medida em que se utiliza da própria ficção para estabelecer um paradoxo de verossimilhança com o que a extrapola. O plano rigoroso é o agente condutor desse estabelecimento, a proposta do “comentar sobre si” é o que aproxima o filme da própria Obra. Entretanto, com um desvio claro. Pela primeira vez desde esse estabelecimento de suas novas bases, Sang-soo liberta a câmera em uma nova virada que subverte as próprias bases de seu cinema quase que todo. Justamente no filme dentro do filme, na ficção deslocada à lateralidade de sua condição subversiva como documento, a encenação explode em movimento, em cor, em entrega a uma certa pessoalidade intimista que reflete todo o caminho percorrido até então. A somatória de seus estudos e comentários, o controle absoluto sobre a encenação e a câmera se encontram agora em posição de confronto direto, de choque em relação ao filme “pessoal”, ao ensaio íntimo. O Filme da Escritora marca, sem dúvida, um “turning point” na linha que Sang-soo vinha edificando até então. É como se propusesse, na verdade, um recomeço.

Perdido em meio à obra total, pode ser um filme que, a princípio, não se diferencia muito dos outros. Mas quando localizado na temporalidade da Obra, adquire um status semelhante a Certo Agora, Errado Antes. Ambos os filmes acarretam um desejo de transformação, um interesse genuíno por estabelecer uma ruptura clara com o momento anterior, ainda que preservando o esgotamento positivo retirado de lá. E ambos, talvez justamente por isso, são os melhores filmes do diretor que se encontram nessa fase. No mais antigo, há um claro interesse pela formalização da narrativa ficcional como objeto de desmonte em função do comentário localizado nas instâncias micro. No mais recente, uma entrega e um comentário tão lúcidos acerca da própria Obra, que se torna quase como uma abertura à invasão da verdade. Mas, vale lembrar, a liberdade existe na ficção dentro da ficção.

O Filme da Escritora (So-seol-ga-ui yeong-hwa / The Novelist’s Film)
Direção: Hong Sang-soo
Roteiro: Hong Sang-soo
Elenco: Lee Hye-yeong, Kim Min-hee, Seo Younghwa, Mi-so Park, Yunhee Cho, Ju-bong Gi, Seong-guk Ha, Lee Eun-mi, Hae-hyo Kwon, Kim Si-Ha
Duração: 92 min.

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