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Crítica | O Franco-Atirador (1978)

por Bruno dos Reis Lisboa Pires
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John Ford durante sua extensa carreira foi acusado de ter celebrado ao longo de seus filmes a corrida civilizatória dos Estados Unidos como fundadora da mentalidade americana. Um erro afirmar tão assertivamente isto, quando, na verdade, seu cinema era sobre identificar esses símbolos de glória americana e destrinchá-los, entender porque a marcha para o oeste, o exército e o processo migratório são tão importantes para compreender a construção do país. Peter Bogdanovich, cineasta da Nova Hollywood, afirmou: “Ford imprime o fato”, todas as mentiras constroem os fatos, negar as mentiras iria contrariar o sentido da própria história, foi uma estratégia toda a construção mítica dos EUA, e Ford foi um visionário em ter entendido o processo civilizatório como nenhum cineasta.

John Ford, assim como Raoul Walsh, Howard Hawks e Frank Capra, foram cineastas cujo impacto da Segunda Guerra Mundial foram imprescindíveis às suas carreiras, a forma com que o nacionalismo em voga durante o conflito teve reverberações inquietantes dentro de seus filmes que buscavam reatar com a suposta crise da representação cinematográfica durante um período hostil do país. Se houve uma geração influenciada pela Segunda Guerra, é lógico que aconteceu o mesmo duas gerações depois, após a Guerra do Vietnã, todo um culto em volta do tema surgiria.

Talvez o melhor paralelo entre Ford e a Guerra do Vietnã seja O Franco Atirador, do jovem diretor Michael Cimino, ali dirigindo seu segundo longa-metragem. É fácil de sintetizar o filme, visto que ele seja tão bem dividido em duas metades: camaradas do interior que veem a guerra com empolgação e as consequências dessa ilusão. Em Sangue de Heróis de Ford, a sangrenta e patética batalha contra os índios foi mascarada como um feito heroico do exército americano, consolidando o imaginário bélico dos EUA que insiste numa ideia de heroísmo por trás das guerras. Olhando para trás, o Vietnã foi um caso muito singular onde houve um amplo desgaste desse imaginário e uma eventual quebra nas expectativas que transformaram o evento em um catalisador para crises quando na verdade seria uma celebração do domínio americano.

Se nos primeiros minutos de O Fraco Atirador fica clara a alienação (do grupo de amigos que logo partirá ao Vietnã, a quebra dessa expectativa é tão dura para eles quanto para o público, que em uma sequência de apenas trinta minutos na guerra, vê seus protagonistas morrendo ou enlouquecendo. Não por menos, o filme se dá muito pouco tempo em mostrar a guerra em si dentro das três horas de duração, a explosão que abre os trechos do Vietnã serve quase como punchline, invertendo o cenário estabelecido durante a hora inicial do filme. Jacques Lourcelles, antigo editor da Presence du Cinèma, deu título à sua crítica do filme como “Jornada ao Fim do Inferno”, mas não dizendo respeito do país asiático, mas sim dos EUA, a jornada de reconciliação daqueles que sobraram em um país fragmentado pela derrota.

A filmografia de Cimino é toda voltada à América como um projeto individualista, um país que se atropela em orgulho e dor em nome da honra que carregam. O Vietnã foi tão fundamental ao cineasta quanto a Guerra da Secessão para John Ford. Durante os EUA de Reagan muito foi feito para esquecer o fracasso, filmes como Rambo ou desenhos como G.I Joe não foram suficientes para esquecer aquilo que O Franco Atirador veio nos lembrar, um capítulo imprescindível da história do país que não é possivelmente esquecido graças às bajulações e espetáculos patriotas que são empurrados no cinema americano desde o início da sétima arte.

Por mais que a viagem às trevas presente no interior dos pântanos asiáticos seja parte da grande alucinação das personagens, a transcendência dos efeitos delirantes é no interior da América, onde a ferocidade até então injustificável da guerra é justificada. É um país onde deve-se orgulhar de andar fardado o tempo inteiro, uma reflexão alegórica de alguém que não é capaz de alcançar as próprias expectativas. Todos os homens que foram à guerra sempre foram atiradores, mas parece que a violência orienta-se a si mesmo reverbera-se um choque de realidade impactante, capaz de resumir pelo menos os últimos cem anos do país.

O argumento principal abordado por meio do antirrealismo reflete toda a energia perdida de uma geração que sofre as consequências da fome de poder a todo custo. Gradualmente o cinema americano passa a ser dedicado aos assombros da guerra, uma leva nova de cineastas que trata o totalitarismo com olhos mais esclarecidos, rompendo não só com isso mas com a tradição cinematográfica. Cimino foi um dos nomes chave para o entendimento desse cinema, um cineasta que prezou em analisar as raízes da violência independente do seu cenário. Talvez por isso O Franco Atirador seja o filme de maior sucesso do diretor, por se tratar de um filme tão amplo sobre o sentimento que todo um povo sentia no peito.

O Franco Atirador (The Deer Hunter) – EUA, 1978
Direção: Michael Cimino
Roteiro: Michael Cimino, Deric Washburn
Elenco: Robert De Niro, John Cazale, John Savage, Christopher Walken, Meryl Streep, George Dzundza, Rutanya Alda, Pierre Segui, Amy Wright, Richard Kuss, Joe Grifasi
Duração: 183 min.

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