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Crítica | O Fundo do Coração

Amor e magia.

por Fernando JG
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Uma cinematografia do risco”. É assim que inúmeros críticos costumam denominar o estilo de Coppola, sobretudo depois de O Poderoso Chefão II e do problemático Apocalypse Now. Neste último, todos se lembram de quando sua obsessão por uma ideia de filme quase o levou ao fracasso ao apostar alto numa arriscada empreitada. Todos viam, àquela altura, que o próximo passo era engavetar tudo o que foi produzido e fim de história. Diria que Francis Ford Coppola, quando insiste numa ideia inspirada de filme como fez nos seus melhores, parece mesmo produzir e dirigir sob efeito de um encanto, de tal modo que não posso me abster de reconhecer que o seu O Fundo do Coração, é, sem sombra de dúvidas, o longa-metragem mais lírico e delicado de sua filmografia, concluído sob ambiciosa audácia já conhecida. De encher os olhos. Coppola provoca aquilo que François Truffaut chama de “o prazer dos olhos”. Orgasmos visuais. 

Fascinante. Maravilhoso. Surpreendente. Lírico. Deslumbrante. Soberbo. O Fundo do Coração é, senão, um pouco de tudo isso. Ou melhor, é a apoteose do artifício imagético de Coppola. É tão harmonioso o casamento entre o roteiro melodramático e a invenção da mise-en-scène da Era de Ouro de Hollywood clássica dos anos 30-40 que a cada frame, a cada conjunto de imagens justapostas, a cada plano-aberto e plano-sequência suspiramos inevitavelmente pela beleza da fotografia manipulada pelo impecável Vittorio Storaro. A breguice do argumento textual que oferece uma fábula de amor, separação e reconciliação ao filme atrela-se perfeitamente a um mundo imaginário em que a elegância romântica está amparada num impressionante jogo de luzes que indicam o humor do próprio filme. O vermelho e o azulado que dominam as cenas reluzem nos rostos dos personagens e iluminam uma vitrine de heróis ficcionais apaixonados, machucados e errantes que vivem numa espécie de sonho na Las Vegas incandescente. Sem querer ser lynchiano, mas se Coppola um dia teve um sonho e fez deste um filme, então este sonho era sobre One From The Heart

A imagem é esteticamente perfeita, simétrica e encapsula em si uma vertente da noção de beleza. Como o filme é feito inteiramente dentro de um estúdio e grande parte sobre um palco, utilizando técnicas pioneiras de efeito na edição de vídeo, resulta numa arte visual extremamente artificial, inventiva, imaginária e falsa. Como indica uma fala de Hank: “tudo é falso, nada é real”. Assim, a história só adquire tons de fantasia extraordinária por conta dos artifícios de imagem que inventam um mundo mágico e para deleitá-lo é preciso deixar de lado a faculdade de entendimento e desfrutar do filme da maneira como ele se apresenta. Pode soar inverossímil no primeiro momento, mas é verossimilhante dentro da sua proposta. A imagem é esteticamente perfeita por conta da sua artificial plasticidade, como uma maquete de plástico é a perfeita mimese do seu objeto representado. A paisagem crepuscular vai assentando cada vez mais suas cores numa mistura entre o alaranjado do pôr-do-sol e o azulado do céu pré-noturno, conferindo vida e entusiasmo ao cenário fílmico e nos apraz por completo.

O plot dramático concentra-se na relação entre Hank (Frederic Forest) e Frannie (Teri Garr) enquanto atravessam um processo de crise intraconjugal. O cineasta trabalha com lugares mega comuns num texto tradicional, em que após a separação conturbada ambos tentam encontrar a superação por meio de outras pessoas que têm muito a oferecer para eles, mas não conseguem superar um ao outro. “Desgaste” parece ser a palavra definitiva para remarcar a situação de um casamento em que o amor fala alto, mas só ele não basta para salvar o que quer que seja. É tão lírico que os personagens são, ao fundo, amantes numa Las Vegas clássica. Os personagens são muito bem colocados na disposição cênica, enquadrando posturas que combinam com a ideia do longa-metragem. Além dos protagonistas, destaco ainda outra dupla famosa que faria o inesquecível par do irrepreensível Paris, Texas dois anos depois: Nastassja Kinski e Harry Dean Stanton. Nastassja, com um encanto místico e olhar misterioso, carrega grandes cenas e é indispensável. 

Me parece, contudo, e não sinto que falho em presumir isso, é que a estética não está subordinada à narrativa, como ocorre tradicionalmente; mas é antes a estética do filme que conduz toda a fábula fílmica, de modo que não importa a densidade ou não do argumento textual que dá o esqueleto para o roteiro, mas importa o modo como a história será repassada por meio das imagens. Com isso, coisas tão clichês, como quando cada um está curtindo a solteirice melancólica separadamente, ganham um ar de “maravilha” no momento em que estas cenas distintas se interconectam por meio de uma câmera dinâmica que opera por meio de jogos de ilusão visual e também através da montagem criativa que faz com que uma cena, como num jogo de espelhos, entre dentro da outra, conectando os personagens de maneira plena. Eles estão separados na mise-en-scène mas permanecem conectados psicologicamente e juntos na imagem total do filme, como se a técnica cinematográfica quisesse demonstrar, por meio da estética que caracteriza a película, que o fio condutor que os interliga se chama amor. Isso se chama cinema. Cinema essencial. 

As canções que fazem parte da trilha sonora são lindas, basicamente. Sentimentais, elas traduzem sempre, em todos os casos, o estado de alma dos personagens representados, por isso tão melancólicas em suas letras e emocionalmente complexas na análise da conjuntura. São elas, as músicas, que dão esse ar de “clássico” ao filme e recuperam um nostálgico clima retrô com sons que abusam de um piano com tons líricos e um saxofone embriagado, construindo um ritmo doce, num blues bem azulado, saudoso e dolorido. Afinal de contas, o filme não deixa de ser uma espécie de musical com fortes traços da Nova Hollywood e um experimentalismo muito vanguardista na forma. É uma película inteira, feita com mãos de mestre e entregue de modo total, resultando, além de uma soberba cinematografia, num álbum impecável que carrega o mesmo nome do longa, composto por Tom Waits e cantado por Crystal Gayle. 

One From the Heart tem postura de obra-prima. Versátil e multicolorida, o enredo de Coppola é uma tarde de amor prestes a anoitecer e trabalhado num melodrama estilizado do começo ao fim, provocando afetos lírico-hedônicos como resultado de amplo uso sinestésico dos aspectos visuais e sonoros. Falando de coisas terrenas e de paixões humanas num estilo próximo a uma afetação divina, o cineasta promove a sua própria apoteose imagética, entregando um de seus filmes mais incompreendidos, mas sobretudo um dos mais essenciais. 

O Fundo do Coração (One From The Heart, EUA, 1982)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola, Armyan Bernstein
Elenco: Frederic Forrest, Teri Garr, Raul Julia, Nastassja Kinski, Lainie Kazan, Harry Dean Stanton
Duração: 107 min

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