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Crítica | O Grito: Origens – 1ª Temporada

por Leonardo Campos
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Compreender e aceitar O Grito: Origens como um produto de entretenimento que vai muito além das colocações equivocadas de algumas críticas culturais sobre a série, publicadas logo após o seu lançamento brasileiro, é levar em consideração que ao sentarmos diante de sua estrutura em seis episódios, precisamos nos dar conta dos códigos culturais distintos. Falamos, pensamos e contemplamos entretenimento enquanto espectadores ocidentais. Mesmo que a globalização tenha dirimido muitos limiares culturais, ainda temos alguns modos de produção e disseminação narrativa que se diferem entre um sistema e outro. Há muito do esquema clássico hollywoodiano em determinadas realizações francesas e italianas locais, mas também há um jeito específico de se conduzir histórias no âmbito ficcional audiovisual destes países europeus. O humor inglês ainda é resistente ao processo dominante da globalização cultural estadunidense, mas hoje já temos algumas trocas significativas, mesmo que cada nação tenha as suas peculiaridades que pululam em torno de nós, leitores, espectadores e internautas, receptores cada vez mais abrangentes no que diz respeito ao consumo de ficção que nos assalta de todos os lados.

É o que nos leva ao audiovisual oriental. O cinema, a TV e os serviços de streaming disponibilizados para smartphones, notebooks e outros suportes ampliaram as nossas possibilidades de acesso aos produtos japoneses, chineses, coreanos, etc. Não é novidade alguma assistir filmes de terror dentro deste segmento. Há vinte anos, por exemplo, os Estados Unidos começaram a investir nas refilmagens de histórias bastante populares no setor oriental e com isso, a indústria investiu em mais importação de produções pra legendar ou dublar e lançar nos cinemas ou diretamente em vídeo, DVD e Bu-ray por aqui. Diante disso, chegamos ao que pretendo esboçar enquanto reflexão sobre O Grito: Origens. É possível você não consumir e gostar da produção no quesito entretenimento, mas não há como acusar a série de ser falha no que concerne ao devido entendimento da sua história. Os filmes da franquia e até mesmo a refilmagem tinham apostado na sobreposição de narrativas, bem como no entrelaçar de personagens com histórias diferentes, sem as explicações demasiadamente expositivas sobre a motivação para as ações, etc. Não é o padrão nipônico. E, reafirmo, não é novidade.

Longe de ser pedante, O Grito: Origens possui uma estrutura que podemos chamar de clássica dentro dos mecanismos que engendram a produção cultural de lá. É como eles dinamizam as suas narrativas. Sem explicar minuciosamente os porquês. E é nessa atmosfera de mistério que as coisas funcionam e nos fazem pensar mais. Atualmente, o entretenimento anda cada vez mais explicativo, detalhista, sem deixar espaço para interpretações e permitir que as pessoas debatam. Nada contra uma narrativa com o habitual começo, meio e fim linear, com personagens explicadinhos, motivações determinadas, etc. É uma opção válida e, por que não, interessante? Disso não tenham dúvidas. A questão não é dificultar para ser pseudointelectual. O que exponho é que não se trata da única possibilidade de narrar, sabe? Cheio daquelas conveniências, objetos colocados propositadamente na primeira cena para explicar algo no desfecho, dentre outras estratégias que nos acostumamos por aqui. Os orientais estruturam as coisas diferentemente, mas não significa que a opção seja uma falha, como apontado por muitos. São outras formas de pensar a ficção, algo que nos pede discernimento para não achatar nossos horizontes culturais.

Diante do exposto, vamos para a série. Inspirada na estrutura dramática criada por Takashi Shimizu, O Grito: Origens recria o ambiente cinematográfico para nos apresentar as origens da maldição que tomou conta da casa em Tóquio. Aqui, há pouquíssimas referências geográfica, numa exploração mais interna dos ambientes, tanto da casa quanto da escola. Ademais, temos algumas passagens da rua onde a casa se situa e pontos de travessia dos personagens, mas nada que deixe a cidade ser parte intrínseca da narrativa. O clima fantasmagórico acomete todos os planos da produção, desde o vibrante preto e branco de algumas passagens bastante breves ao tom empalidecido de outras paletas mais intensas, sempre com o uso do verde e do azul como se estivesse numa aplicação de verniz ainda sem estar completamente seca. Sequências subversivas e aparentemente aleatória exploram o ambiente e as ações que tornaram o lar tão macabro e alvo das maldições posteriores. Ao preceder todos os filmes da franquia, a série não delineia Kayako, tampouco Toshio, tal como os conhecemos, tendo o gato e o clima sombrio como os únicos pontos de conexão visual com as produções cinematográficas populares.

Basicamente, o que temos aqui são seis episódios de curta duração, voltados ao entrelaçamento de histórias inseridas no bojo da tal casa amaldiçoada. As narrativas labirínticas nos apresentam Haruka (Yuna Kuroshima), garota assombrada pelo som de passos em sua casa, o especialista em fenômenos sobrenaturais, Yasuo Odajima (Yoshiyoshi Arakawa), envolvido na busca por respostas que expliquem os acontecimentos sombrios, além da pesadíssima história paralela da jovem em busca de amizades na nova escola, garota que pode não ser tão recatada como aparenta à primeira vista. Noutro núcleo, uma mulher vive uma situação de cativeiro, trecho também envolvido por muita violência. Todas as linhas de O Grito – Origens, dirigidas com eficiência por Shô Miyake, deflagram os impactos da violência em ambientes domésticos. Pressões psicológicas, agressões físicas, relações deterioradas, desejos sublimados, desconhecimento de direitos básicos e ausência de esperança demarcam a vida dos personagens que perambulam em ciclos intermináveis de dor. É uma temática basilar no terror oriental, já contempladas em O Grito, O Chamado, dentre outros exemplares do segmento.

Ademais, quando a violência não é dentro do eixo familiar, perpetrada por consanguíneos, surge de maneira abrupta nas relações cotidianas, de trabalho ou nas dinâmicas de estudo, etc. Algo como Imagens do Além, Espelhos do Medo, etc., narrativas que apresentam o mal de fora para dentro, mas igualmente avassalador. Para levar a série até o fim, é preciso passar por uma cena de estupro indigesta, a morte pesadíssima de uma mulher em cativeiro, além de uma passagem peculiar com um feto, doses generosas de violência gráfica que também tornam a série diferente dos filmes, produções que eram mais fantasmagóricas. Os trajes brancos e os longos cabelos negros que escondem rostos pálidos também foram deixados de lado para uma abordagem predecessora aos elementos visuais que já se tornam cristalizados em nosso imaginário. Mais tradicional no que diz respeito ao uso de trilha sonora, a produção deixa de lado também uma das manias do terror contemporâneo: os ferrões que chamamos de jumpscare. Há alguns saltos em determinados pontos, mas nada abrupto demais. A ação, os diálogos e o devido equilíbrio da maquiagem e dos efeitos visuais e especiais é que tornam a sensação macabra delineada.

Das sequências subversivas ao horror sobrenatural, pesa na balança a tragédia humana, afinal, a série O Grito: Origens faz uma abordagem aterrorizante sobre o comportamento das pessoas, mais maléficos que qualquer assombração. O mal encarnado aqui surge enraizado dos personagens em ações frias, tomadas por sentimentos sem qualquer tom de nobreza. São pessoas baixas, acossadas pela ira, inveja, ódio, dentre outras sensações que não encontram um caminho a não ser a tragédia. Sem os perfis atrativos da cultura do entretenimento dominante aos nossos olhos, as figuras que circulam pela série não esbanjam carisma, atravessam seus cotidianos sem empatia, num trajeto tomado por egoísmo e posturas reativas carregadas de violência. Esse é o diferencial da série que enfrenta um desafio hercúleo em ser mais aderente pelo fato de ter o seu conteúdo apresentado no formato seriado. Talvez num filme, as histórias entrelaçadas funcionassem de maneira mais orgânica, sem nos dar tanto trabalho interpretativo. No formato em questão, ou você mantém a maratona ou pode se perder no fluxo de informações. Para quem desconhece a franquia, a série da Netflix é uma desafiadora introdução.

O Grito: Origens – 1ª Temporada (Ju-on: Origins) — Japão – 03 de julho de 2020
Criação: Shô Miyake
Direção: Shô Miyake
Roteiro: Hiroshi Takahashi, Takashige Ichise
Elenco: Yoshiyoshi Arakawa, Yuina Kuroshima, Koki Osamura, Kai Inowaki, Tokio Emoto, Kai Inowaki, Tei Ryushin
Disponibilidade no Brasil: Netflix
Duração: 6 episódios de 27 a 30 min. cada

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