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Crítica | O Guarani, de José de Alencar

A saga do bom-selvagem Peri e sua amada Ceci, um marco do nacionalismo romântico.

por Leonardo Campos
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Um romance com dimensões épicas: assim é O Guarani, de José de Alencar, a trajetória do indígena Peri e da donzela Ceci, história que deflagra, no desenvolvimento de seus conflitos sobre amor, os choques culturais e as questões da colonização do território brasileiro. Publicado em 1857, este marco do indianismo na literatura romântica brasileira tem a sua ação desenvolvida na primeira metade do século XVII, em específico, 1604. O narrador, em terceira pessoa, nos apresenta D. Antônio Moriz, um fidalgo português que teria sido um dos participantes do processo de fundação do Rio de Janeiro, em 1567. Cheio de posses, ele é o dono de uma suntuosa moradia, situada nas margens do rio Paquequer, na Serra dos Órgãos, um lugar com toques medievais em sua estrutura, representação das riquezas deste personagem que é um dos centros gravitacionais da história, catalisador de acontecimentos que demarcam os desdobramentos na vida de Peri, representação fidedigna do bom-selvagem, e Ceci, a sua filha loura de traços europeus, o oposto de Isabel, a filha ilegítima tratada como prima, tema comum na literatura, material caudaloso para discussões sobre representações raciais demonizadas nos clássicos literários brasileiros do século XIX.

Dividido em quatro partes, Os Aventureiros, Peri, Os Aimorés e A Catástrofe, o volumoso romance O Guarani faz uma abordagem do Brasil num momento de processo formativo, uma região monumental, paradisíaca, primitiva e cheia de dualidades entre a beleza exuberante e o perigo iminente. Leitor voraz dos documentos deixados pelos cronistas do descobrimento, José de Alencar toma como base das descrições da Literatura de Informação, tendo em vista criar a sua fábula da nacionalidade, numa obra que versou sobre o campo e a cidade, o passado e o presente, o europeu colonizador e o indígena bravo e valente. Na história de amor entre Peri e Ceci, temos a gravitar uma série de elementos idealizados da cultura dos nativos, mergulhados em códigos sociais que nos remetem ao período medieval, como ocorreu de maneira distinta, mas parecida, em Iracema e, especialmente, em Ubirajara, o épico indianista sobre amor e honra.

Depois de salvar Ceci da morte numa avalanche de pedras inesperada, Peri ganhou a confiança de D. Antônio Moriz, transformando-se numa espécie de guardião da moça. Álvaro, o personagem ideal, com traços europeus, é o interessado no amor e na atenção da jovem, mas ela o vê apenas como um amigo, guardando toda a sua ternura para o indígena em questão. Na casa da família Moriz, as relações são bastante peculiares: o dono exige códigos cavalheirescos, com os funcionários trabalhando num esquema de vassalagem medieval, tendo a honra e a lealdade como questões basilares. É neste local que o espírito do patriotismo que engendra o nacionalismo romântico se mantem fortalecido. O contato entre indígenas e colonizadores parece ameno, mas uma situação inusitada muda o que se encontrava estabelecido. Numa caçada, o pai de Ceci aniquila uma índia, sem querer, criando uma crise entre os habitantes da região. Os aimorés querem se vingar, tendo a filha do fidalgo como foco, mas Peri sempre a defende.

Assim, na primeira tentativa de retaliação, o personagem heroico consegue salvar a moça e elimina os aimorés vingativos. Mais conflitos se desenvolvem, tendo ainda uma trama envolvendo um inimigo de D. Antônio Moriz, interessado em sua posição de poder. Com a tribo e os homens brancos em crise, Peri assume um novo ato heroico, um sacrifício em prol do estabelecimento da paz: toma veneno e como sabe que a sua tribo é antropófaga, acredita que será devorado, aniquilará os demais e acabara com a guerra. Mas, numa das tantas peripécias de O Guarani, recebe um antídoto da doce e meiga Ceci, salvando-se da morte. O pai da moça, ciente da sina na qual está envolvido, clama para que Peri se converta ao cristianismo e pede que ele fuja com a sua filha. Pedido feito, pedido aceito. Assim, os dois seguem: a jovem aceita morar na mata com o indígena e, na escapada, consegue ouvir os conflitos bélicos com barris de pólvora na mansão.

“Apoteótico”, o romance ainda guarda emoções para uma enchente que pede aos personagens o fôlego necessário para mais uma escapada. Peri e Ceci sobrem num tronco de árvore e navegam por caudalosas texturas fluviais, rumo ao desconhecido, como deixa claro José de Alencar em seu desfecho com a dupla de figuras ficcionais marcantes a rumar pelo horizonte, numa prosa bastante descritiva, adornada por muitos elementos poéticos e estrutura narrativa que exalta os valores da literatura nacionalista do século XIX, com resgate de lendas, choques culturais, exuberância da natureza, bem como idealização do indígena, personagem retratado como herói nacional desta comunidade imaginada chamada Brasil. Relido em diversos suportes, O Guarani foi transformado no polêmico filme homônimo dirigido por Norma Bengell, em 1996, tendo também ganhado tradução cinematográfica em 1979, sob o comando de Fauzi Mansur, além de uma versão não sonora, de 1912, apenas registradas em periódicos da época, mas perdida no tempo. Ademais, foi minissérie na Manchete, em 1991, cordel premiado e HQ, numa comprovação de sua popularidade e pertinência para compreensão da história brasileira por meio de registros literários. Ah, e tem a épica obra de Carlos Gomes, para ópera, um clássico marcante de nossa memória musical, reconhecido até por quem não conhece o romance ponto de partida.

O Guarani (Brasil, 1857)
Autor: José de Alencar
Editora: Ática – Série Princípios.
Páginas: 312.

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