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Crítica | O Hobbit: Uma Jornada Inesperada (versão de cinema e versão estendida)

por Ritter Fan
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estrelas 3

Será que trilogias irretocáveis têm que ter trilogias-prelúdio ruins? É como uma lei da física? Espero que não. Com Star Wars foi assim e com O Senhor dos Anéis, a julgar por O Hobbit: Uma Jornada Inesperada, também será, mas só depois do terceiro filme é que esse julgamento será realmente possível.

Não que eu esteja comparando lixos radioativos com Jar Jar Binks e Hayden Christensen com a jornada do pequeno Bilbo, mas vocês entenderam o que quis dizer não é mesmo? E, para aqueles fãs de Tolkien e de Peter Jackson que estiverem lendo isso aqui estupefatos e balançando a cabeça em negativa e já me xingando, afastem por um minuto o “fanboyismo” cego e burro e vejam esse filme com a necessária distância.

E esse crítico aqui não é um cara “que nunca leu Tolkien”, como vocês devem achar. Sim, eu já li Tolkien. Aliás, já li tudo o que ele escreveu sobre a Terra-Média, mas não me considero um devoto do escritor. Gosto e ponto final. Não mais do que isso. Li mais por uma questão de obsessão do que por adorar cada linha do incrível universo que ele criou. Ou seja, não sou um analfabeto tolkeninano e, mesmo assim, consigo ver que Uma Jornada Inesperada não se compara com a trilogia O Senhor dos Anéis do mesmo diretor. É a bíblica transformação da água para o vinho, só que ao contrário, infelizmente.

Mas Peter Jackson, apesar de compartilhar grande parte da culpa pelo crime cometido, não é o único culpado. O principal culpado é justamente a doença que recai sobre Thorin e que recaira sobre seu pai e avô antes dele: ganância. Esse sentimento, que normalmente vem acompanhando de mesquinhez, atropelou a arte e levou a melhor. Debaixo de um monte de desculpas pseudo-intelectuais com um subtexto evidente cheio de cifrões, a Warner – e também Peter Jackson – se viram quase que literalmente forçados a esticar a história de O Hobbit em três filmes de três horas. Pensemos por um minuto: a trilogia O Senhor dos Anéis já era uma trilogia em livro (cada um formado por dois tomos e o último também de seis apêndices) e cada um foi convertido em um filme. São livros de tons sombrios, mais para um público de jovens adultos e adultos, com trama bastante complicada. O Hobbit é um livro essencialmente para crianças, sobre um grupo de anões, um hobbit e um mago que partem para matar um dragão malvado. Sim, há todo um universo de detalhes por trás, mas em essência é isso e, ainda por cima, é uma narrativa contada em tom alegre, de aventura despretensiosa mesmo.

Eis que a ganância entra na jogada e transforma o leve em pesado, o alegre em sombrio e o divertido em carregado. Ver O Hobbit é ver uma fita inchada e arqueada sob seu próprio mastodôntico peso. É ver o espírito da obra original ser completamente pervertido para arrancar mais alguns trocados de gente que, como eu e você, verá alguma coisa com a “marca” Senhor dos Anéis e o nome Peter Jackson mesmo que seja um teatro de marionetes em uma festa de crianças. É por isso que filmes são divididos em dois, três e, provavelmente, muito em breve, em quatro, cinco e até seis longos pedaços. Não existe qualquer justificativa artística. Só monetária.

Querem passar mais tempo mergulhados na Terra Média? Assistam a trilogia anterior. Querem passar mais tempo ainda? Releiam todos os livros. Ah, querem mais ainda? Ora, então vejam os filmes em câmera lenta. Mas daí a dizer que Uma Jornada Inesperada é um filme maravilhoso, irretocável, há uma distância muito grande.

Peter Jackson e os demais roteiristas (voltam Fran Walsh e Phillipa Boyens e une-se a eles Guillermo del Toro, que teria sido o diretor não fosse a lerdeza da produção) expandem e utilizam cada detalhe da obra original. Criam um inimigo novo, mais presente: um orc albino sem braço e cheio de cicatrizes chamado Azog (Manu Bennett), retirado de um dos apêndices de O Retorno do Rei. Isso se dá, pois a ameaça representada pelo temível dragão Smaug, com o espaçamento dos filmes, simplesmente não pode ser o antagonista da primeira parte.

Mas Azog é o menor dos problemas da obra. Peter Jackson não sabe onde parar. Faz tomadas longas e desnecessárias de tudo. Não deixa nada para a dúvida. Transforma a experiência em um suplício. Reparem, por exemplo, a sequência em que os anões chegam à casa de Bilbo (Martin Freeman) sem serem convidados. Nem mesmo no livro a progressão é tão lenta. Mas Jackson sabe que cada pequeno aceno ao público que sabe recitar o livro de cor é mais gente seguindo o diretor como um deus peludo. Assim, temos duas músicas e a ação demora 40 minutos para começar.

Seria possível argumentar que são 13 anões, mais um hobbit e mais um mago que precisam ser devidamente apresentados. No entanto, se também considerarmos que 10 dos 13 anões simplesmente não têm função alguma na narrativa (o que é um defeito também do livro), essa exposição toda é redundante, inflada e, em última análise, completamente desnecessária.

E o tom leve dessa imensa abertura contrasta com o tom mais sombrio do que vem posteriormente, como se o filme perdesse sua identidade no meio do caminho, como se Peter Jackson oscilasse entre o que Tolkien realmente queria e o que ele acha que atrairá mais gente para o cinema. E, nesse processo, até mesmo os efeitos especiais sofrem. A costumeira qualidade da Weta Digital, empresa de Jackson que foi literalmente construída para a trilogia original, não revela grandes avanços e, em determinadas sequências, vê-se claramente o uso de composição com fundo verde ou chroma-key. Uma dessas sequências é a que envolve o mago Radagast, o Castanho (Sylvester McCoy), despistando os orcs com seu trenó puxado a coelhos alimentados com Red Bull. Vemos não só a falta de detalhes dos animaizinhos, como o trenó está claramente destacado do fundo, o que contribui para tornar toda a sequência artificial e desconcertante.

Toda a importante sequência das charadas no escuro entre Bilbo e Gollum (Andy Serkis) também sofre pela mão pesada e confiante demais de Jackson. Para começar, de escuro a cena não tem nada. Ela é mais iluminada do que estádio de futebol, em equivocada escolha de Jackson, que retira completamente o potencial de suspense e tensão do que vemos. As rochas, brilhantes como se refletissem a luz de refletores, parecem diamantes.

E não é só o lado técnico que desgasta o filme. A escalação de Richard Armitage como Thorin, o rei dos anões que junta a gangue para iniciar uma jornada até a Montanha Solitária para matar o dragão Smaug e recuperar a fortuna de seu povo que o monstro roubara, é tudo aquilo que não esperamos que ele seja: altivo, bonito, bem arrumado e todo aprumado. Mas a culpa não é de Armitage, na verdade. O problema está mais na caracterização do personagem. Ele é o mais alto dos anões, o de porte mais nobre, o mais altivo, o mais sério, o mais bonito, o mais tudo, basicamente. Ele é o perfeito e estereotipado herói de filmes de aventura. O que isso significa? Que Peter Jackson não acreditava que um anãozinho junto com outros 12 anõezinhos, acompanhados de um ser ainda mais baixo e de um mago idoso poderia sustentar um filme. Ele precisava de um “humano normal”, alguém cortado de uma cartolina, alguém que nos lembrasse imediatamente de Aragorn, vivido por Viggo Mortensen na trilogia original. Isso é tão evidente que é doloroso. E sim, significa a total entrega de Jackson ao que dá dinheiro versus o resquício de integridade artística que ele ainda poderia ter.

“Ah, mas um diretor precisa também pensar no dinheiro!” Claro, é verdade. Especialmente Jackson, que tem participação na gorda bilheteria do filme. Mas, mesmo com isso em mente, veja o que ele fez na trilogia original. Ele manteve seu norte e adaptou inteligentemente uma obra fantástica. Em O Hobbit ele se baseou no que ele acha que seu público espera e, com rédeas soltas, sem precisar contar os centavos como ele precisou em O Senhor dos Anéis, partiu para cortar, acrescentar, revirar, perverter e pasteurizar a obra original, traindo até mesmo seu próprio trabalho anterior.

Mas é evidente que a jornada de Bilbo e seus amigos é, mesmo assim, fascinante. Novamente, o detalhismo na reconstrução da Terra-Média por Jackson e sua equipe é de dar inveja a qualquer filme de época. Cada anão tem suas próprias características, mas conseguem manter uma unidade “histórica”. Os cenários – com especial destaque para Valfenda (eu já disse que odeio essa “tradução” de Rivendell?) – são muito eficientes em transpor para telas a grandeza das descrições de Tolkien. A música de Howard Shore, apesar de ser de longe a menos inspirada de todos os seus trabalhos pela Terra Média, ainda assim consegue transmitir a urgência necessária e cria um novo tema muito bom para caracterizar os anões.

Em termos de narrativa, Peter Jackson fez algumas boas escolhas também. A primeira delas foi começar contando sobre a ascensão e queda de Erebor logo nos primeiros minutos de projeção. Tomando cuidado para esconder a aparência do dragão, vemos a majestosa cidade dos anões, a mastodôntica mina de metais e pedras preciosas e, claro, o ataque de Smaug e a fuga dos pequenos, além da recusa de ajuda por parte dos elfos. Tudo isso em concisos cinco minutos, basicamente demonstrando que Peter Jackson ainda tem esse poder quando quer. Toda essa sequência nos ajuda a entender o sentido da jornada dos anões, sua urgência, sua necessidade.

Mas, do lado de Gandalf (Ian McKellen), o livro não oferece muitas explicações sobre o porquê da ajuda do mago. Jackson, porém, não se faz de rogado e, em um lenta porém importante sequência em Valfenda, reúne magistralmente as linhas narrativas de O Hobbit com a da trilogia O Senhor dos Anéis no mesmo momento em que faz confluir para uma mesma mesa de reunião os mais nobres dos personagens: o mago cinzento, Saruman (Christopher Lee que, incapacitado por doença, filmou essa cena em Londres mostrando o lado eficiente do uso do chroma-key), Galadriel (Cate Blanchett) e Elrond (Hugo Weaving). Nela, vemos a fatal hesitação de Elrond, a conspiração de Galadriel com Gandalf e um pequeno sinal da futura traição de Saruman ao mesmo tempo em que entendemos as razões do mago cinza em ajudar os anões a derrotar o dragão.

Se cenas como essa viessem em sequência, o filme teria certamente outro passo. Mas, seguindo o encontro monárquico em Valfenda, somos brindados com uma pouquíssima inspirada sequência com gigantes de pedra brigando e, logo em seguida, com uma aventura tipo “Indiana Jones” na caverna do Rei Orc (ou Grão-Orc) que destoa completamente do ritmo que até então Jackson imprimira à fita. Não vemos nenhum senso de perigo ou de urgência, apenas esquetes atrás de esquetes somente interrompidas pela já comentada cena entre Bilbo e Gollum.

Uma Jornada Inesperada pode não ser algo tão ruim quanto A Ameaça Fantasma ou os outros dois terrores que vieram em seguida, mas Jackson flertou perigosamente com essa possibilidade. Não fosse a força dos personagens, da mitologia criada ao redor deles, da dramaticidade de algumas cenas e das – poucas – escolhas acertadas de Jackson, o disco desse filme estaria ao lado do disco do pequeno Anakin Skywalker em minha pilha de porta copos redondos e brilhantes com um furo no meio.

Sobre a projeção em 48 quadros por segundo

O Hobbit foi o primeiro filme mainstream de cinema filmado e lançado em 48 quadros por segundo. Essa velocidade de filmagem é o dobro da usada pela indústria e teria como objetivo aproximar o filme da velocidade de percepção da retina humana. Não é a primeira vez que velocidades maiores que 24 quadros por segundo foram usadas, mas é a primeira vez nessa escala. Por detrás desse experimento, está a clara intenção de tornar a experiência cinematográfica única, para levar mais gente aos cinemas e também permitir o uso do 3D sem o escurecimento da tela. Mais sobre a tecnologia, aqui.

Acontece que talvez não estejamos prontos para ela. Aliás, nem Peter Jackson parece estar. Vi o filme duas vezes, uma em cada versão para comparar e o resultado da versão em 48 quadros é que algumas cenas de ação parecem mais “aceleradas”, como se clicássemos no fast forward do controle remoto. Esse problema é de ajuste de visão e acontece com mais frequência no começo, mas distrai muito, além de causar estranhamento.

No entanto, mais do que a “aceleração”, os 48 quadros por segundo, por exigirem mais iluminação, acabam tornando todas as cenas, mesmo as que  deveriam ser escuras, em claras e isso é especialmente enervante na cena das charadas no escuro entre Bilbo e Gollum que tratei mais acima. Sim, em termos de detalhes, as paisagens talvez fiquem mais deslumbrantes, mas o ganho final ainda não justifica a tecnologia, pelo menos não em Uma Jornada Inesperada, até porque, os defeitos dos efeitos especiais também ficam mais salientes.

E, por cima disso tudo, o verniz novelesco também fica aparente. Sabem quando vemos aquela novela da Globo (eu mesmo nunca vi, mas me contaram que é assim…) filmada em alta definição? Pois bem, a aparência de Uma Jornada Inesperada em 48 quadros por segundo fica parecida. A atmosfera cinematográfica, com isso, se perde completamente e parece, em muitos momentos, que estamos vendo televisão. Pode até ser uma questão de costume, mas o fato é que pelo mero fato de uma tecnologia existir, não quer dizer que ela deva ser usada. E, se tiver que ser usada, é provável que o cinegrafista também tenha que pensar em 48 quadros por segundo e não fazer o tradicional de forma diferente. A obra terá que nascer com os 48 quadros em mente, de maneira que a tecnologia seja usada em sua total amplitude.

Pelo momento, fico com os “tradicionais” 24 quadros por segundo.

Versão Estendida

estrelas 2,5

Emulando as versões estendidas da trilogia original, Peter Jackson acrescentou mais 12 minutos de filme para lançamento em DVD e Blu-Ray. Mas, em uma obra que já parece longa demais, esses 12 minutos extras apenas ajudam nessa percepção. E o pior é que, em um filme que já conta com dois “números musicais”, as cenas extras acrescentam outros dois ainda, com o Grão-Orc em um resultado que trará sorrisos amarelos para quem quer que assista. Mas, em linhas gerais, a adição em nada ajuda o filme.

Para não dizer que elas são uma total perda de tempo, há duas cenas interessantes. Uma delas é completamente nova e se passa em Valfenda. Vemos Gandalf tendo uma séria conversa com Elrond sobre os problemas que a jornada pode trazer e vemos a reação de Thorin – e de Bilbo – a esse debate. Essa cena antecede a reunião do conselho entre Gandalf, Galadriel, Saruman e Elrond e lá vemos uma cena estendida em que Gandalf explica em mais detalhes as razões para ajudar os anões. No entanto, nenhuma das duas cenas acrescentam novas dimensões ao que vemos. São só mais do mesmo, algo bem diferente das versões estendidas dos filmes anteriores.

No final das contas, a versão estendida de Uma Jornada Inesperada é  só mesmo para os fãs devotos da Terra-Média que ficariam também muito felizes se Jackson filmasse a grama do Condado crescendo em tempo real…

O Hobbit: Uma Jornada Inesperada (The Hobbit: An Unexpected Journey, EUA/Nova Zelândia, 2012)
Direção: Peter Jackson
Roteiro: Peter Jackson,  Fran Walsh, Phillipa Boyens, Guillermo del Toro
Elenco: Ian McKellen, Martin Freeman, Richard Armitage, Andy Serkis, Cate Blanchett, Hugo Weaving, Christopher Lee, Ken Stott, Graham McTavish, William Kircher, James Nesbitt, Stephen Hunter, Dean O’Gorman, Aidan Turner, John Callen, Peter Hambleton, Jed Brophy, Mark Hadlow, Adam Brown, Ian Holm, Elijah Wood, Sylvester McCoy, Manu Bennett
Duração: 169 min. (versão de cinema), 182 min. (versão estendida)

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