Home LiteraturaConto Crítica | O Homem da Multidão, de Edgar Allan Poe

Crítica | O Homem da Multidão, de Edgar Allan Poe

Um conto sobre o advento da modernidade, arauto das Teorias da Comunicação do século XX.

por Leonardo Campos
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Edgar Allan Poe, um dos grandes expoentes da literatura romântica do século XIX, ofertou no conto O Homem da Multidão, uma assertiva discussão sobre o advento da modernidade e seus desdobramentos, numa composição ficcional que nos permite, dentre tantas interpretações, dialogar com os tópicos temáticos da sociologia da comunicação, em especial, os conceitos de massa e multidão, ainda muito pertinentes na contemporaneidade. Publicado em 1840, a sua história traz um narrador protagonista sem nome, um homem que senta num café londrino durante uma tarde de outono para observar os passantes na rua. Recentemente recuperado de uma doença não detalhada no texto, ele contempla a paisagem e fica fascinado, num misto de assombro, com a multidão que atravessa a rua. De todos os passantes, um se destaca, o velho misterioso, figura curiosa que ele começa a seguir. A sua aventura em busca da radiografia deste personagem social de destaque começa durante a noite e segue até a manhã do dia seguinte.

No final do processo, após analisar detidamente e se colocar diante de tal homem, o narrador segue a sua caminhada, numa postura que reflete tudo que instigava a assimilação dos comportamentos de ordem coletiva, oriundos das inovações do século XIX, uma era de muitas novidades, com a industrialização que turbinou a urbanização e, com isso, o aceleramento das cidades que tinha como consequência, o surgimento de novas formas de percepção da realidade, identidades em transformação, em linhas gerais, significativas alterações na maneira como se um vê o “outro”, numa mescla de deslumbramento e estranhamento diante destes elementos que começavam a compor o que chamamos de modernidade. Em suma, uma época de sujeitos que se viam atravessados por mudanças muito vertiginosas, situação que causavam desorientação social, sensação de ausência de raízes mais profundas nas relações, num conflito que fazia com que todos tentassem entender melhor e buscar sentido em si e em sua realidade circundante.

O narrador, em suas adivinhações, procura compreender pelas vestimentas e trejeitos, as profissões, ambições, anseios, histórias de vida e estratos sociais, numa observação sobre a linha de pertencimento de cada um daqueles que passam, em especial, o tal velho que estabelece a sua jornada reflexiva. Num contexto de abandono do privado pelo público, O Homem da Multidão demonstra a habilidade de Edgar Allan Poe em descrever paisagens, demonstrando ao leitor as emoções diante de uma cidade iluminada, novidade naquele momento, num conto que também reforça a capacidade do autor em trabalhar a passagem do tempo de maneira muito eficiente. Sem destino muito delineado, o velho caminha pelas ruas e se torna indecifrável para o narrador observador, uma figura que incapacita a apreensão de sua singularidade, impessoal e diferente do caráter mecanizado da modernidade fluente.

Esta postura perseguidora do protagonista de O Homem da Multidão permite, dentre tantas interpretações, o estabelecimento de uma alegoria acerca da ânsia por desvendamento daquilo que é a “essência” do ser humano, a sua singularidade, algo tão profundo e complexo de ser compreendido, movimento que a psicanálise logo mais colocaria como tema para reflexões. A multidão e seu comportamento padronizado, a impossibilidade de entendimento na troca de experiências numa realidade já incapaz de ser devidamente entendida, com um velho que escapa do geral e se sobressai na coletividade que rege a vida social. Nesta multidão confusa e agitada, de conceito visual, sonoro e quantitativo, quase sufocante para quem a integra ou até mesmo a observa com distanciamento, o ritmo das máquinas se estabelece e a efervescência demonstra potencial para discussões sociológicas, isto é, a relação entre a sociedade, o fato social e o agir coletivo, em consonância com as teorias comunicacionais, num flerte com a sociedade, o humano e a psicologia das massas.

Inspiração para Walter Benjamin debater o papel do narrador pós-moderno em um de seus mais famosos ensaios, além de subsidiar Charles Baudelaire em seu clássico O Pintor da Vida Moderna, o conto O Homem da Multidão é uma fluente narrativa sobre o homem-massa, aquele que é incapaz de estar sozinho, mas também não consegue estabelecer laços mais profundos em sua jornada numa sociedade sempre muito dinâmica e composta por suas massas e minorias, lugar onde a rua funciona como uma espécie de palco do espetáculo grandioso que é a efervescência social. Aqui, o velho perambula, talvez, em busca de um grupo a qual pertença, afinal, de acordo com o olhar do narrador, o personagem é um “problema”, pois não se enquadra cabalmente nos padrões que se identificam os demais, numa antecipação das discussões sobre a sociedade de massa, parte integrante das Teorias da Comunicação.

O Homem da Multidão (The Men of The Crowd) — EUA, 1840
Autor: Edgar Allan Poe
Publicação original: Philadelphia Dollar Newspaper
Edição lida para esta crítica: Edgar Allan Poe: Medo Clássico – Vol. 1 (DarkSide Books, 2017)
10 páginas

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