Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | O Homem da Terra

Crítica | O Homem da Terra

Um baita roteiro, um fantástico elenco e uma história que prende do começo ao fim.

por Luiz Santiago
5,7K views

Existe uma beleza muito grande na maneira de se realizar um bom “filme de câmara”. Obras que se passam exclusiva ou majoritariamente num único espaço cênico normalmente trazem consigo um roteiro que se propõe uma missão dificílima, que é prender a atenção do público mesmo quando não existe uma grande movimentação entre espaços e a proposta do enredo é dar conta de uma situação a ser resolvida naquele espaço. Há uma sensação de claustrofobia e de isolamento que são essenciais para obras assim, tornando o pouco tráfego dos personagens no ambiente uma coisa grandiosa em sua simplicidade, como a pequena mudança de um ponto para outro, a alteração dos ângulos ou planos da câmera a cada “ato cênico” ou as manipulações mais ousadas da direção de fotografia e arte, que normalmente também indicam, às vezes sutilmente, outros movimentos no quadro. Em O Homem da Terra (2007), o diretor Richard Schenkman coloca em prática as boas lições aprendidas com filmes que tiveram essa abordagem no passado (numa escola de construção de mise-en-scène  que vai de Um Barco e Nove Destinos a Dogville) e entrega um longa fascinante.

Como estamos falando de uma produção de baixo orçamento, é claro que existem esferas técnicas aqui que deixam a desejar, sejam as cenas muito granuladas, seja a finalização do processo de dublagem, que em alguns momentos acaba incomodando. Vale dizer que seria muito melhor para o filme se não houvesse parte das quebras que o texto faz com a saída do protagonista de dentro da casa para levar coisas para fora, emendando essas saídas com algumas conversas com uma das professoras por quem ele está apaixonado. Mas mesmo nesses casos, estamos falando de um incômodo pequeno e até narrativamente compreensível dentro do filme, apontando para a interrupção de um bloco cênico que às vezes nos faz lembrar os atos de uma peça de teatro, algo recorrente nesse tipo de produção.

SPOILERS!

John, vivido por David Lee Smith, é o indivíduo “fora do tempo” que o roteiro de Jerome Bixby cerca, com todos os seus mistérios e centenas de possíveis histórias. Um dos méritos do roteiro é não dar importância para respostas certinhas, com apelo científico e verificações realistas para o fato de um Cro-Magnon estar vivendo no século XX. Ao ser visitado pelos amigos da Universidade antes de sua misteriosa mudança, John resolve contar o seu segredo para todos, num ímpeto que ele mesmo não entende o porquê, mas que lhe faz muito bem. O impacto que essa atitude tem para a construção do personagem é grande, porque mostra a necessidade de conversa desse homem com pessoas que fizeram parte de sua vida por 10 anos. E mesmo sabendo que ninguém vai acreditar nele e que isso pode causar algum problema no futuro, a solidão de John o impele a falar a verdade, como em uma sessão de terapia cheia de coisas aparentemente impossíveis sendo ditas.

Cada professor na sala onde o filme se passa contribui com o conhecimento de sua área de estudo para contextualizar as informações recebidas, o que torna as respostas de John ainda mais interessantes. Penso que o roteiro dá alguns primeiros passos em falso até estabelecer de verdade os termos de aceitação dos colegas para o fato de que o indivíduo com quem trabalhavam por tantos anos é um Homem das Cavernas vivendo em nossos dias. Da tese de uma obra de ficção científica sendo escrita até as revelações impressionantes e polêmicas como o fato de John afirmar ter sido Jesus Cristo, o texto consegue consertar a estranheza inicial, tornando as histórias e as reações dramaticamente ricas e capazes de engajar o espectador. No momento em que a conversa entra na esfera religiosa e as comparações entre Budismo e Cristianismo começam a aparecer, o tom do filme muda por completo, e para melhor.

Em A Casa de Bonecas, um dos arcos da série em quadrinhos chamada Sandman, encontramos um homem a quem é concedido a “dádiva” de não morrer… até que ele queira morrer. Uma das coisas que Neil Gaiman explora nessa primeira história com o personagem é como o tempo ilimitado de vida torna muitas coisas que são raras para qualquer ser humano comum, um evento absolutamente banal e como por mais vida que se tenha, é impossível conhecer tudo (embora essa questão seja relativa, dependendo da personalidade do personagem, basta ver o caso de Rui de Leão, que não suportou a imortalidade por tanto tempo). Eu fiquei preocupado em dado momento da narrativa, porque imaginei que Bixby abraçaria certo caminho niilista na abordagem para o pensamento de John a respeito da humanidade, das relações, da esperança e do amor. Ocorre que a construção desse personagem é bem mais complexa do que a gente pensa. Ele não é exatamente um homem muito expressivo, mas não perdeu a capacidade de sentir, de dar chance para algo bom em sua vida e de reconhecer a beleza ou de exercer a solidariedade e a compaixão. E tudo isso fica muito claro na reta final da obra, quando o aspecto religioso, ético e moral se evidencia.

O mistério em torno de John e tudo o que ele representa tornam O Homem da Terra um filme extremamente prazeroso de se assistir, porque a História é um poço de eventos construídos por narrativas de vencedores, reinterpretadas ou modificadas para atender a algum tipo de interesse individual ou de um grupo, de modo que o relato pessoal de um homem como estes desperta em nós uma curiosidade incontrolável. É válido dizer que o trabalho de Richard Schenkman tem todos os cuidados necessários para um filme em espaço cênico limitado, sempre mantendo os personagens em pequenos movimentos dentro da sala e trazendo uma variação de planos e ângulos divididos por blocos, às vezes priorizando um ou outro dependendo da atmosfera do momento. A maneira como ele nos deixa é a mais completa possível, porque indica uma semente de dúvida plantada na cabeça dos colegas de Universidade de John e o coloca mais uma vez dando espaço para o amor. Mesmo depois de tantos anos, ele ainda não perdeu a capacidade de se apaixonar e de ter esperança de ser feliz e fazer alguém feliz. Talvez, no fim das contas, a chave de tudo seja realmente esta.

O Homem da Terra (The Man from Earth) — EUA, 2007
Direção: Richard Schenkman
Roteiro: Jerome Bixby
Elenco: David Lee Smith, Tony Todd, John Billingsley, Ellen Crawford, Annika Peterson, William Katt, Alexis Thorpe, Richard Riehle, Steven Littles, Chase Sprague, Robbie Bryan
Duração: 87 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais