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Crítica | O Homem e O Tigre Vagô, de Henrique Galvão

por Leonardo Campos
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O terreno da zooficção encontrou ampla ressonância na trajetória da literatura, tanto ocidental quanto oriental. Os animais habitam o imaginário literário há milênios e o tigre é uma das criaturas fascinantes que protagonizam algumas histórias marcantes, dentre elas, o livro em questão, ponto alto da literatura juvenil angolana (e portuguesa). Com forte carga simbólica na cultura, os tigres representam a ira e a realeza na Ásia Oriental. No horóscopo chinês, indicam imprevisibilidade e impulsividade. Para os samurais japoneses, representam força e equilíbrio. Os coreanos os têm como o felino rei. Para os indianos, os tigres estão como assento para Shiva, o Pai-Céu. É neste bojo cultural que a os se encontram centralizados os desdobramentos da ação de O Homem e o Tigre Vagô, do escritor angolano Henrique Galvão, homem que se dizia mais amigo dos animais que dos homens. O seu felino é o terceiro da Trilogia dos Bichos do Mato, iniciada com as aventuras de um leão e uma macaca em Kurika e as peripécias de um veado em Impala, ambas narrativas com fortes representações sobre o mundo animal, às vezes em seu estado selvagem, noutras passagens antropomorfizados, tendo em mira dar firmeza aos processos alegóricos propostos pela história. Intenso, o livro nos apresenta o felino em postura vigorosa, animalesca e selvagem, mas sem o apelo do horror ecológico.

Aqui, ele é um animal que dá vazão aos seus instintos naturais, sem ser transformado num monstro. Na aventura repleta de aspectos sensoriais, acompanhamos a história de um tigre desde os seus primeiros anos de idade, quando adotado por uma pantera, ao seu amadurecimento e observação do mundo selvagem, momento em que se torna um Tigre Real. A relação com o homem é delineada em vários momentos, sempre dentro de um ponto de vista alimentado pelo combustível da tensão. Ambos, na natureza selvagem, buscam a sobrevivência. Diferente do cenário africano dos antecessores, o felino da história em questão habita a selva indiana. É lá que a enigmática criatura, junto aos outros animais da geografia asiática, tem a sua trajetória narrada num tom fabuloso. Sem animais dos universos anteriores, Vagô apresentam criaturas com forte desenvolvimento psicológico, numa demonstração dos processos de aprendizagem do tigre com referências ao amadurecimento humano. O caçador inicialmente órfão se torna um emblemático caçador, figura mítica que faz a diferença dentro de seu espaço de atuação cotidiana. Mesmo com todo o apelo voltado ao público juvenil, o livro não deixa de conter momentos de intensa violência, em especial, nos trechos com a caçada do tigre, voraz em sua busca por alimento, na afirmação de seus instintos de felino dominante, topo da cadeia alimentar.

Com a sociedade portuguesa descrita em pormenores, a abjeta figura de Salazar é o alvo do tigre aqui, tudo nas entrelinhas, haja vista o contexto histórico de escrita do conteúdo. Cabe ressaltar que apesar dos temas nobres, Henrique Galvão não foi um escritor tão retilíneo em vida. Ao menos durante uma parte dela. Apoiador fervoroso do Estado Novo, tomou asco de Salazar depois de algumas iniciativas e mudou de rumo político ainda em tempo de não se contaminar cabalmente pelo direcionamento fascista. Capitão do exército e inspetor da administração colonial, também é conhecido por ser um dos membros organizadores do assalto ao paquete de Santa Maria, evento que abalou a sociedade na época e promoveu algumas manchas na imagem do ditador português. Além da postura política firme, o escritor também se dedicou ao ofício da caça, tarefa aventureira que lhe permitiu as experiências descritas em seus romances, em especial, a trilogia em questão, tendo em mira dois felinos, isto é, o tigre Vagô e o leão Kurika, e o veado, Impala. A forma como descreve a vida animal e alegoriza a selva é fruto de alguém com profundo conhecimento da temática abordada ao longo da escrita focada no processo de aproximação entre seres humanos e animais. Foi um período de aprendizagem para investir noutras publicações sobre caçadas, zoologia e artigos jornalísticos pra a revista Portugal Colonial.

Aqui, o tigre Vagô surge como uma figura encantada. Como já indicado, ele é a representação do homem da infância ao seu amadurecimento. O animal ocupa uma posição de espécie salvadora das pessoas da cidade num momento futuro, o livro não deixa de lado, no entanto, o tom político e socioeconômico da Índia, descrito em pormenores pelo narrador. A sociedade esperava por mudanças. Menos realista que as jornadas zooficcionais anteriores. A sua passagem do espaço selvagem para o urbano é sutil, figurativo, tomado por um significativo simbolismo, com presença de adjetivação excessiva, metáforas e verbos sensoriais, etc. Ao longo de suas 190 páginas, Henrique Galvão divaga bastante e mantém imbricado dentro de suas convicções narrativas, estratégias para contar a história que não podemos chamar de dispersivas, mas que colocam o potencial aventureiro do romance no reduto do marasmo. As coisas demoram de acontecer já antes da metade e ganham mais velocidade quando o desfecho se aproxima.  Com ilustrações do pintor Francesc Domingo, organizadas pela Editora Coliseu em sua edição de 1953, o romance com prosa rica em efeitos sensoriais é um marco da literatura portuguesa, constantemente presente em estudos sobre zooficção. Falho em alguns aspectos, mas importante na trajetória de seu autor.

O Homem e O Tigre Vagô (Angola, 1940)
Autor: Henrique Galvão
Editora no Brasil: Coliseu (1953)
Páginas: 190

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