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Crítica | O Homem Elefante (1980)

por Marcelo Sobrinho
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David Lynch tornou-se, ao longo de sua longa carreira, um cineasta conhecido por suas obras de tom surrealista, que vão desde o seu terror de estreia Easerhead a grandes filmes que marcaram este século, como Cidade dos Sonhos. Mas Lynch nunca deixou de se provar versátil e igualmente competente em filmes mais tradicionais, como o semi-folhetinesco Uma História Real e o seu primeiro grande sucesso de público e crítica – O Homem Elefante, de 1980. É certo que o seu segundo longa-metragem, que narra a história de Joseph Merrick, um homem na Inglaterra vitoriana acometido de uma terrível doença que desfigurara seu corpo, mantém elementos oníricos e fantasiosos, como os que o diretor insere na abertura e no desfecho da obra. Mas, em todo o seu miolo, predomina uma narrativa linear e calcada na realidade dos fatos.

O Homem Elefante exibe uma estética muito mais legatária do próprio Expressionismo Alemão e do cinema de terror que se originou dele. A fotografia em preto e branco abusa dos contrastes entre sombras e luzes. A texturização aterrorizante do cenário pelo fotógrafo Freddie Francis é uma das mais exitosas de toda a história do cinema. O primeiro ato do filme de David Lynch remete às obras de Fritz Lang e F. W. Murnau, mas a homenagem mais óbvia me parece ser mesmo a Robert Wiene e seu longa-metragem seminal – O Gabinete do Doutor Caligari. O modo como Merrick é exposto nas ruas por Byte, o seu “empresário”, em verdadeiros espetáculos de freak show lembra muito a canastrice do protagonista de Wiene expondo seu assistente acometido por sonambulismo há mais de 20 anos. A ideia de uma doença espetacularizada como horror está presente nas duas obras. A aproximação de Lynch com o cinema de terror ganha força inclusive na trilha sonora minimalista e abertamente caricatural. David Lynch quer a caricatura. No começo, Merrick é apenas uma.

A escolha do diretor por essa estetização macabra de seu filme é oportuna inclusive pois não distingue os espetáculos de rua tão hediondos, onde seres humanos são reduzidos a feras grotescas, das próprias sessões do hospital para onde o protagonista é levado e tratado como uma mera aberração clínica. Isso está explícito na cena em que Merrick é exposto pelo Dr. Frederick Treves a seus pares. Seja nas ruas ou nos hospitais, homens como o protagonista de Lynch tornam-se diversão para aproveitadores. Tudo isso soa assustadoramente atual em um mundo como o nosso, onde pessoas tornam-se motivo de galhofa em programas de auditório e de sórdida curiosidade científica para médicos desumanizados. Em O Homem Elefante, o próprio ambiente hospitalar parece hostil e amedrontador. Ao menos no começo da projeção, o protagonista ora aparece totalmente coberto ora se esconde nas sombras do próprio quarto.

É curioso o caminho de inversão de paradigmas que o filme de David Lynch vai traçando a partir do seu desenvolvimento. A fera, que viva de assustar plateias e curiosos, vai se provando um homem sensível, inteligente e amável. O famoso cineasta norte-americano consegue criar no espectador a mesma ansiedade mórbida que os freak shows criavam em seu público para ver como era o corpo enodoado e deformado do “homem elefante”. Até certo ponto, Lynch nos torna cúmplices dessa curiosidade. Merrick consegue ensinar a todos nós que há muito a ser descoberto para além das aparências e dos estereótipos. É particularmente emocionante a cena em que ele recita de cor todo o salmo 23. Esse é um dos primeiros momentos em que a própria câmera se rende a um contra-plongée que dignifica o protagonista e reivindica sua humanidade. Eis aqui o grande ponto em que a narrativa vira completamente para provar a grandeza daquele homem e a baixeza daqueles que o exploravam. O roteiro e a direção irrepreensíveis de Lynch nos convencem de que ele, Joseph Merrick, é que vivera anos cercado por feras.

O final de O Homem Elefante é um dos mais belos da história da sétima arte. Não se sabe exatamente porque Joseph Merrick dormira na posição que sabidamente o mataria ao obstruir suas vias aéreas. Mas o roteiro constrói muito bem uma lindíssima explicação, enquanto o plano-sequência de David Lynch acompanha a preparação do protagonista para a morte e nos oferece uma pista para compreendê-la. O protagonista olha uma última vez para o pequeno quadro na parede que retrata ele mesmo dormindo apoiado sobre uma pilha de travesseiros. Merrick a retira para dormir dessa vez. O mais belo da conclusão de O Homem Elefante é notar que Joseph Merrick fora privado de sua humanidade por toda a vida, mas, ao menos na morte, fez questão de reafirmá-la. Viveu como fera, mas morreu como homem. Repousando ao menos uma vez como todos os homens o fazem. Ainda que fosse no leito da morte.

O Homem Elefante (The Elephant Man) — EUA/Reino Unido, 1980
Direção:
David Lynch
Roteiro: Christopher De Vore, Eric Bergren, David Lynch
Elenco: Anthony Hopkins, John Hurt, Anne Bancroft, John Gielgud, Wendy Hiller, Freddie Jones, Michael Elphick, Hannah Gordon, Helen Ryan, Kenny Baker
Duração: 124 min.

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