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Crítica | O Homem Que Copiava

por Leonardo Campos
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Ao revisitar O Homem Que Copiava, um dos melhores filmes do cineasta Jorge Furtado, algumas palavras de Malcolm X foram relembradas de imediato. Em determinado momento de sua turbulenta vida, o líder político alegou que “o capitalismo costumava ser como uma águia, mas agora se parece mais com um urubu, sugando o sangue dos povos”. Em outro momento lúcido, afirmou que “não é possível haver capitalismo sem racismo”. As falas, elucidativas para compreensão da jornada de André, protagonista do filme em questão, tratam de um esquema secular que se perpetua cotidianamente: a conservação da mão de obra negra como reminiscências da escravidão. André não chega a não um escravo literal, mas as suas condições são análogas.

Desta forma, o filme reflete as ideias de Malcolm X. É uma alegoria do capitalismo com força opressora, principalmente quando se trata de jovens rapazes negros que não conseguem sair da ciranda de desigualdades sociais. Isso, no entanto, não torna o filme um fardo político-social, mas é a junção disso com apurados elementos estéticos. Diversão e crítica caminham juntos, sem o perigo de eclipsar um ao outro. A história possui uma estrutura simples: André (Lázaro Ramos) é funcionário de um estabelecimento comercial e tem como função, assumir a fotocopiadora do local, trabalho árduo e mecânico que o enche de tédio cotidianamente. Ao descobrir que está apaixonado por Silvia (Leandra Leal), a sua vizinha, ele precisa desembolsar 38 reais para impressioná-la, pois pretende conquista-la com um presente. No entanto, como conseguir o valor? O personagem é tão humilde que numa ocasião, ao tomar café numa lanchonete só para estar mais perto da moça, teve de voltar caminhando para casa, pois havia gastado o dinheiro do transporte.

Quem vai propor algo mirabolante é a sexy Marinês (Luana Piovanni), sua colega de trabalho. Ao perceber as vantagens da nova máquina copiadora da loja, ela deduz que eles podem fazer dinheiro através de cópias coloridas de cédulas de 50 reais. O plano é audacioso, mas vai ter seus momentos de tensão, tal como o planejamento de um assalto, ação que perde impacto na vida de André depois que ele ganha na loteria. Para ajudar em suas “malandragens” diárias, André conta com a colaboração de Cardoso (Pedro Cardoso), um amigo que também vive as mazelas de ser trabalhador pobre no Brasil.

A sensação que temos ao terminar o filme é que todos estão muito bem: Leandra Leal e Luana Piovanni entregam bons desempenhos dramatúrgicos, Pedro Cardoso também dá conta do seu recado, a narrativa é bem conduzida enquanto produção audiovisual, mas o destaque central vai para dois elementos específicos que funcionam juntos: o personagem André, construído pelo roteiro de Furtado, bem como a sua interpretação, dada por Lázaro Ramos em momentos de inspiração. Com 20 anos e morando com a mãe, o rapaz vive um cotidiano ofegante, retrato secular do Brasil. Alijado pelo sistema que oprime, André recebe 310 reais por mês, 290 quando descontados os impostos. Em dificuldade até quando precisa comprar uma caixa de fósforos, o personagem é a representação cabal de muitos jovens brasileiros que precisam deixar de estudar para sobreviver, atitude que alimenta o ciclo de dependência, pois ao passo que não estudam, não há avanço, algo que eleva a “Casa Grande” (elite) constantemente e mantém a “Senzala” (os negros, pobres e periféricos) em seu “devido lugar”. Segmentado até mesmo em seu discurso, o personagem é o que Stuart Hall, em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, chamou de “crise de identidade”, isto é, um sujeito descentrado que ao ser constituído por várias identidades, passa a ter dificuldade em “se encontrar”.

Produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre, O Home Que Copiava é um filme de 124 minutos bem sucedidos de projeção. Com a condução musical de Leo Henkin e a montagem eficiente de Giba Assis Brasil, a produção é um dos melhores filmes de Jorge Furtado, cineasta que até 2003, época do lançamento, possuía pouca experiência industrial, mas muitos traquejos para contar histórias, haja vista Ilha das Flores (hoje questionável do ponto de vista sociológico, mas importante para a estética do cinema brasileiro) e Houve Uma Vez Dois Verões.

Dentre outros elementos que merecem destaque, cabe ressaltar a narração que segue uma linha bem ao estilo Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese, uma série de discursos caóticos que ganham significado ao passo que a narrativa avança. Os diálogos do roteiro são outro ponto forte do filme, graças ao humor ágil e autêntico que produz, sem se perder em suas demasiadas referências culturais. Talvez uma das maiores traduções da definição de hipertexto para a linguagem cinematográfica no bojo do cinema brasileiro, o filme é a cara de seu protagonista, um rapaz com visão de mundo compartimentada, numa dimensão psicológica que abre espaço para estudo em diversas instâncias.

Ao trazer elementos da narração em primeira pessoa, juntamente com traços da linguagem coloquial, das gírias e dos neologismos, Jorge Furtado conduz um roteiro que nos remete ao skaz, estilo literário inglês, bem conhecido em seu emprego na trajetória de Holden Caulfield, protagonista do instigante O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. Com inclusão de trechos animados, o cineasta faz questão de ter cuidado na manutenção do ritmo, tarefa cumprida com êxito ao descrever o cotidiano de André, personagem que representa parte de uma minoria desprezada na seara do capitalismo, “sistema abutre” que tal como apontou Malcolm X, é racista e segrega.

O Homem Que Copiava — Brasil, 2003
Direção: Jorge Furtado
Roteiro: Jorge Furtado
Elenco: Carlos Cunha, Júlio Andrade, Lázaro Ramos, Leandra Leal, Luana Piovani, Paulo José, Pedro Cardoso
Duração: 123 min

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