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Crítica | O Homem Que Matou o Facínora

por Ritter Fan
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No crepúsculo da marcante carreira de John Ford, ele fez um filme que, travestido de western, é, na verdade, uma bela história de amor. O Homem Que Matou o Facínora foge dos moldes que caracterizaram filmes anteriores do diretor, notadamente Rio Bravo e Rastros de Ódio e, nos brindando com a presença, em tela, de dois dos maiores nomes do gênero, John Wayne e James Stewart, além de Vera Miles, faz um faroeste intimista de escopo épico, se é que essa não é uma contradição em termos.

O aspecto épico de O Homem Que Matou o Facínora repousa no fato de ser uma obra que aborda vários anos de conflitos em uma cidadezinha chamada Shinbone, quando ela ainda nem fazia parte de um estado americano, mas sim do chamado open range, ou seja, terra livre, sem dono, usada pelos proprietários de gado como pastagem extensiva em conflitos diários com os fazendeiros que tentavam ganhar a vida com plantações. Assim, a fita é uma clássica ranch story (problemas em fazendas) que ganha contornos complexos históricos de empire story (domínio dos donos de gado)e também de revenge story (história de vingança) em um roteiro bem azeitado que prende a atenção do espectador e que é trabalhado com perfeito ritmo por John Ford.

Apesar de James Stewart, no papel de Ransom “Rance” Stoddard ser claramente o protagonista, a mera – ainda que esparsa – presença de John Wayne, como o pistoleiro Tom Doniphon e que é o estopim da narrativa, já nos permite a conclusão que o protagonismo, em Liberty Valance, é algo bastante relativo. Afinal, a chegada do já envelhecido Senador Stoddard e sua esposa Hallie (Vera Miles) a Shinbone, depois de anos de ausência é o começo do filme, ela se só acontece pelo falecimento de Tom. Mas quem é Tom?

Para responder essa pergunta, o roteiro, inteligentemente usando a “desculpa” de uma entrevista para o jornal local, trabalha um longuíssimo flashback narrado por Stoddard, 25 anos dos eventos do começo do filme. Há uma indiscutível elegância na narrativa e uma reverência à uma época que não mais existe, dos heróis pistoleiros, do desbravamento do Oeste, da chegada da tecnologia (com a ferrovia sendo o símbolo máximo) e, sim, muita patriotada, mas tudo dentro de um real contexto histórico, apesar do aspecto inteiramente ficcional da história. Com o flashback, passamos a entender quem foi Tom Doniphon e porque ele e Rance eram tão amigos. Mas será que eram amigos mesmo? E quem, afinal de contas, é Libery Valence? E, mais importante, que “matou o facínora”? Tudo isso é tratado de maneira crível por Ford, que, com William H. Clothier, se esmera em uma fotografia em preto e branco que se preocupa com os contrastes e com as sombras, por vezes usando de artifícios simples, mas muito eficientes, especialmente na sequência em que Peabody (Edmond O’Brien) o bêbado dono do jornal local é cercado por Liberty Valance (Lee Marvin) e sua gangue (dentre eles, o “mau” – Lee Van Cleef – de Três Homens em Conflito), além das sequências que colocam Tom nas sombras, nos deixando pistas do que veríamos mais para o fim.

Mas vocês se lembrarão do aspecto intimista que mencionei no começo. Isso está presente na completa ausência de paisagens deslumbrantes ou mesmo de cenários exagerados. Muito da ação se passa no restaurante local, a partir do momento que um jovem Rance, que acabara de sair da faculdade de Direito na costa leste e estava indo para Shinbone, é atacado por Valance e seus bandos. A partir daí, tudo é a tentativa nobre de Rance de levar o vilão para a Justiça, opondo a lei de seus livros à violência reinante na região. Rance, assim, representa, de uma tacada só, o estado democrático de direito, a tecnologia, a civilização, a vida moderna, enquanto que Valance – e também Doniphon – representa a desordem, os métodos tradicionais, a barbárie, a vida antiga. Basta essa inteligente oposição para que fatos históricos de conflitos entre proprietários de gado e fazendeiros, open range versus Estado e passado e futuro sejam tratados por intermédio do conflito entre Rance e Valance. Uma brilhante forma de se gastar pouco e de se obter o mesmo resultado.

O que incomoda, na verdade, é algo muito prático. Quando vemos Rance mais velho, de cabelo branco, no começo do filme, somos jogados ao passado em que vemos ele como James Stewart era na época. Mas acontece que a narrativa exigia alguém inocente, um idealista que literalmente acabara de sair da faculdade de direito com, no máximo, 30 anos. Mas Stewart já tinha mais do que 50 anos na época, assim como John Wayne e é muito estranho ver os dois contracenando como se jovens fossem. Confesso que demorei um tempo para me acostumar ou, melhor dizendo, para “esquecer” desse detalhe.

No entanto, o que é importante é que, por sobre tudo isso, há a história de amor que mencionei, talvez melhor representada pelo triângulo amoroso existente entre Rance, Tom e Hallie. Tudo é trabalhado com olhares e meias palavras, além de ações altruístas. Afinal de contas, nós já sabemos do desfecho logo nos primeiros segundos de projeção: Rance se casa com Hallie. O que o filme responde é como isso acontece e onde é que Tom entra nessa equação. Só que a amizade, o amor entre amigos também fica evidente quando Rance e Tom estão em cena, ainda que seja aquele tipo de amizade hesitante, distante, fora do comum e improvável. Ford manipula as emoções do espectador que, mesmo ciente do que o futuro trará, não consegue desviar os olhos da tela e sofre pelos personagens na medida em que eles se desenvolvem.

O Homem Que Matou o Facínora não foi o último filme de John Ford, mas, com certeza, no final de sua carreira, ele produziu uma obra-prima que coroou todo o seu trabalho no gênero do faroeste, uma espécie de encerramento efetivo de um primoroso ciclo.

O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, EUA – 1962)
Direção: John Ford
Roteiro: James Warner Bellah, Willis Goldbeck (baseado em romance de Dorothy M. Johnson)
Elenco: James Stewart, John Wayne, Vera Miles, Lee Marvin, Edmond O’Brien, Andy Devine, Ken Murray, John Carradine, Jeanette Nolan, John Qualen, Willis Bouchey, Carleton Young, Woody Strode, Denver Pyle, Strother Martin, Lee Van Cleef, Robert F. Simon
Duração: 124 min.

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