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Crítica | O Iluminado

por Ritter Fan
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  • Contém SPOILERS

Gostaria de propor um desafio.

Assista O Iluminado em condições decentes (boa imagem e bom som e sem interrupções) com alguém que nunca tenha visto o filme ou lido o livro ao seu lado, de preferência alguém que seja fã de filmes de terror e que esbraveje aos quatro cantos o quão valente ele/ela é. Fique quieto, não fale nada, mas observe as reações da “vítima”.

Duvido que seu objeto de estudo acadêmico passe incólume à experiência. E não falo aqui de sobressaltos repentinos ou mesmo de mãos no rosto para não ver as cenas. Falo daquela invisível camada de tensão que somente um punhado de obras cinematográficas de horror é capaz de criar.

Essa experiência só não funcionará se seu porquinho da índia for uma grande pedra de gelo. Caso contrário, ele/ela lhe proporcionará o segundo maior prazer relacionado a O Iluminado, o mergulho do mestre Stanley Kubrick em mais um gênero que ainda não havia tentado e que, como de costume, tirou de letra.

Adaptando romance de Stephen King e, no processo, arrumando “briga” com o autor, Kubrick fez uma obra que tem a sua marca. Não esperem ver elementos da obra de Stephen King muito presentes, pois o roteiro filmado é bem diferente da obra literária, o que demonstra um absoluto bom senso e a costumeira personalidade de Kubrick em adaptar material fonte diverso (vide o caso do genial Laranja Mecânica). Boas adaptações são assim: a ideia original permanece mesmo que seja lá no fundo, mas o trabalho resultante é muito mais de quem adaptou do que de quem foi adaptado. King não gostou – e até hoje não gosta – mas O Iluminado continua sendo, e aqui certamente provocarei fãs de outras adaptações, a melhor adaptação cinematográfica já feita de uma obra do autor, além de ser um dos melhores filmes de horror de todos os tempos. Simples assim.

Contando a história de Jack Torrence (Jack Nicholson), uma homem que, com sua família – a esposa Wendy (Shelley Duvall) e o filho Danny (Danny Lloyd) – vai trabalhar no isoladíssimo hotel Overlook, durante o inverno, como zelador, Kubrick nos leva a uma viagem à loucura. Jack é um pretenso escritor que decide aproveitar esses meses para escrever um livro, mas, na medida em que o hotel vai sendo cercado de neve e o isolamento se agrava, ele vai perdendo a sanidade e começa a interagir com fantasmas do passado do lugar. Esse passado, aliás, é a primeira coisa que  Jack aprende, ainda em sua entrevista de trabalho: seu empregador faz questão de lhe dizer, para fins de total transparência, que um antigo zelador teria enlouquecido fazendo justamente o que Jack faria e matado suas filhas e esposa de forma horripilante. Mas é claro que Jack dá de ombros e arquiva isso apenas como uma “historinha”, ainda que verdadeira. Algo impossível de se repetir.

Essa conversa inicial é, também, uma forma que Kubrick (que também co-escreveu o roteiro) encontrou para ser transparente com o espectador. Ele passa a seguinte mensagem: “essa é a história; é exatamente isso que vai acontecer. Não esperem surpresas aí. Jack vai enlouquecer e vai tentar matar a família. Mas se segurem, pois a viagem será tensa.” Assim, desde cara dando as cartas principais, Kubrick não faz o espectador ficar procurando os tradicionais sustos a cada esquina ou aguardando a trilha sonora subir para que o assassino apareça. Não. Aqui a coisa anda mais devagar e é bem mais horripilante do que o simples “um cara enlouquece e tenta matar seus entes queridos”.

Reparem, por exemplo, nas conversas de Jack com o barman e com o misterioso homem no surreal banheiro. Podemos entender aquilo em seu valor de face, ou seja, que os fantasmas estão mesmo lá conversando com Jack ou podemos simplesmente dizer que tudo, absolutamente tudo, se passa  na cabeça desse homem isolado do mundo e que foi talvez “influenciado” a mergulhar nessa loucura por aquela já longínqua conversa inicial com seu empregador. O único momento em que Jack lida com um elemento que não tem uma explicação do tipo “está na mente dele”, é quando, depois de trancado na despensa por Wendy, a porta magicamente abre.

Mas o filme é também sobre o sobrenatural. Mas essa parte fica ao encargo de Danny, filho de Jack. Ele é o Iluminado do título, assim como o cozinheiro do hotel, Dick Halorann (Scatman Crothers) no último dia de funcionamento do hotel e primeiro dia de trabalho de Jack. A mera conversa mental entre os dois, que revela completamente um para o outro, é incrivelmente assustadora. E olha que  ela é benigna, uma conversa mesmo. Mas a câmera de Kubrick, filmando tudo do ponto de vista de Danny (que nunca antes interagira com outro Iluminado) e com Halorann ao longe, é um daqueles momentos que ficará para sempre queimado no cérebro dos espectadores. E ollha que a história macabra de verdade nem começou…

Depois que Halloran se vai, Danny e seu amigo invisível, representado por seu dedo indicador e sua própria voz modificada (e de fazer joelhos tremerem, aliás), começam a desbravar o hotel em seu famoso velotrol, novamente com Kubrick, à altura de sua cabeça e atrás do menino, seguindo suas aventuras. Essas sequências, que fazem uso de uma arquitetura de cenários e um design de produção impecáveis e que reproduzem um labirinto – fazendo relação, claro, com a sequência final – criam uma atmosfera de suspense e tensão que poucos filmes conseguiram imitar e geraram muitas das mais inesquecíveis cenas do cinema de horror, como as gêmeas ao final do corredor de vestidinhos azuis e a cascata de sangue no hall dos elevadores.

Mas o lado da loucura de Jack é igualmente fascinante. Seu livro, que ele digita em uma máquina de escrever em uma mesa em uma gigantesca sala do hotel que ecoa sua mente, é uma série de repetições da frase “All work and no play makes Jack a dull boy” (escritos, página a página e sem ajuda de fotocópias, pela secretária de Kubrick, vale dizer) e toda a sequência da descoberta de Wendy desse fato e os acontecimentos seguintes do mergulho final de Jack na loucura é um show de atuação de Nicholson e Duvall.

Muita gente reclama do exagero da atuação de Jack Nicholson, seu histrionismo, suas caras e caretas. Reclamam que isso torna óbvio sua descida à loucura. No entanto, isso é em parte injustiça e em parte incompreensão sobre o que é O Iluminado. Como eu deixei bem claro no começo, Kubrick jamais esconde suas intenções e a linha da história. A entrevista de Jack com seu empregador já nos conta tuto o que vai acontecer. Mesmo antes disso, com a tomada aérea que abre o filme acompanhando o fusca amarelo de Jack pela estrada em direção ao hotel, com uma aterradora música composta por Wendy Carlos e Rachel Elkind, Kubrik já quer nos passar estranheza e um certo senso difuso que o destino daquele automóvel não é bom. Assim, pelo menos para mim (e há teorias mil sobre O Iluminado) a loucura de Jack antecede os eventos do hotel. Jack, então, não precisa “tornar-se louco”, ele apenas continua naquela viagem que já trilhava antes mesmo de colocar os pés no hotel Overlook. Com isso, ele precisa já “ser louco” e enlouquecer mais ainda ao longo de seu isolamento e isso Jack Nicholson faz com absoluta perfeição, talvez um dos únicos atores que teriam conseguido efetivamente acertar nesse complicado papel.

Mas Duvall também foi uma escolha perfeita para o papel da atormentada Wendy, que aos poucos vai descobrindo quem realmente é seu marido. Essa sequência após a descoberta dela da prova da loucura do marido na máquina de escrever mostra sua capacidade de se transformar completamente. De uma mulher frágil e obediente ao marido (basicamente é ela que faz todo o trabalho que caberia a Jack), ela se transforma em uma mãe guerreira, mas não no estilo heroico – e mais improvável – de uma Ripley em Aliens, O Resgate, mas sim de forma gutural, instintiva mesmo. Diz a lenda que a sequência dela andando para trás brandindo o taco de beisebol dezenas de vezes na cara de Jack foi resultado de um trabalho do próprio Kubrick em atormentar a atriz até esse limite desesperador (e se o leitor estudar sobre o diretor, verá que é muito possível que ele realmente tenha feito isso), mas o resultado final é uma impressionante sequência de realização, compreensão (do estado do marido) e de reversão de papeis.

O Iluminado é um filme que desafia os sentidos, que nos faz mergulhar em mundo do qual temos até dificuldade de voltar tamanha é a imersão que a fita proporciona. É  Kubrick mostrando absoluta maestria sobre mais um filme de gênero e sobre o Cinema em si.

Mas o que eu quero saber mesmo é: aceitou meu desafio?

*Crítica originalmente publicada em 08 de fevereiro de 2014.

O Iluminado (The Shining, EUA/Reino Unido – 1980)
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick, Diane Johnson (baseado em romance de Stephen King)
Elenco: Jack Nicholson, Shelley Duvall, Danny Lloyd, Scatman Crothers, Barry Nelson, Philip Stone, Joe Turkel, Anne Jackson, Tony Burton, Lia Beldam, Billie Gibson, Barry Dennen
Duração: 144 min.

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