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Crítica | O Justiceiro (1947)

por Ritter Fan
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estrelas 4,5

Elia Kazan se arriscou bastante com O Justiceiro. O filme reúne, em doses equilibradas, um tom de documentário, de denúncia política, de police procedural e drama de tribunal e isso em curtíssimos 88 minutos. A mistura de elementos, em mão menos hábeis, seria tipicamente a receita do fracasso.

Mas Kazan triunfa mais uma vez.

Baseado em história real descrita em artigo por Fulton Ourselr (sob pseudônimo) na publicação Reader’s Digest, a fita conta a história do assassinato, a sangue frio, do padre Lambert, adorado pela comunidade local. A polícia demora a capturar um suspeito e essa aparente incompetência é manobrada pela imprensa e pelo partido de oposição para desequilibrar o governo de Connecticut. Quando finalmente um suspeito é capturado e, impedido de dormir por interrogatórios ininterruptos, acaba confessando, cabe ao promotor público Henry Harvey (Dana Andrews) levá-lo ao tribunal. No entanto, Harvey começa a duvidar da culpa do rapaz e sua integridade o faz lutar contra toda a cidade, arriscando sua esposa e carreira.

O roteiro, escrito por Richard Murphy, é preciso ao compartimentalizar de maneira inteligente os diferentes ângulos pelos quais vemos a história. O assassinato é tratado em menos de um minuto do início da projeção seguido da revolta da comunidade, as asquerosas manobras políticas, a captura e “tortura” do suspeito e, finalmente, no terço final, a sensacional e perigosamente expositiva sequência do tribunal.

Kazan trabalha o roteiro da mesma forma, impedindo que o espectador se confunda, ao deixar de lado detalhes irrelevantes como aspectos das motivações políticas dos envolvidos e focando em como a combinação imprensa, fomentando o clamor social, e mais os interesses escusos colocam a proverbial “carroça na frente dos bois” para que um culpado seja achado a qualquer preço. Tudo faz parte do jogo político que nós é economicamente explicado com uma narração em off de Reed Hadley, que empresta a aura de “falso documentário” que a fita carrega, especialmente em seus início e fim. Com isso, Kazan atropela – no bom sentido – a necessidade expositiva de dois terços de sua obra, impulsionando-a a passos largos e, ao mesmo tempo, embrulhando o estômago do espectador com a sujeira que corre por trás de uma situação como essa e o descaso de todos com a vida de uma pessoa.

Apenas Harvey, que, no começo, não tem dúvidas quanto à culpa do suspeito, passa a olhar tudo a seu redor com mais cuidado e, na sequência do tribunal que mencionei acima, dá um show ao fazer seu trabalho de servir a Justiça e não a interesses de um ou outro grupo político, ou mesmo da sociedade que o colocou nesse cargo. A idoneidade do personagem pode até parecer fantasiosa, impossível mesmo, mas o fato é que isso é um aspecto essencial para a narrativa. Afinal, somos apresentados a personagens atrás de personagens que mostram a corrupção entranhada em uma cidadezinha de “sonho”. Pessoas que têm apenas sua própria agenda e que não pensam em mais ninguém. Harvey, por mais unidimensional que possa ser – e é até certo ponto – é alguém com quem podemos nos relacionar e torcer no meio do lamaçal de políticos, repórteres e cidadãos revoltosos.

E o interessante é que Kazan constrói sua obra de maneira tão engajante, por meio do uso da trilha sonora de suspense composta por David Buttolph e de uma elegante fotografia em preto-e-branco de Norbert Brodine, que não nos importamos que o clímax seja extremamente expositivo, com Harvey derrubando, oralmente, cada uma das provas contra o suspeito. São muitos minutos de explicações e mais explicações que, em circunstâncias normais, faria qualquer espectador rolar os olhos e suspirar. Mas Kazan, a essa altura, já havia armado sua armadilha e é absolutamente impossível não se deliciar com uma espécie de sentimento de “alma foi lavada” quando Harvey começa sua exposição.

Mas é claro que a sequência do tribunal jamais teria o mesmo efeito não fosse a atuação de Dana Andrews. O ator que, um ano antes, estrelara em Os Melhores Anos de Nossas Vidas, de William Wyler, tem um forte ar de galã, quase canastrão ao longo de quase toda a duração do filme, quando os holofotes não estão apontados para ele. No entanto, no momento em que ele passa a ser o alvo quase único das câmeras, ele brilha, especialmente conseguindo nos convencer piamente dos sentimentos de seu personagem em relação ao suspeito. Seus longos monólogos, entrecortados com as reações do juiz, do acusado, das testemunhas e da plateia no tribunal, demonstrando absoluto domínio da montagem por Harmon Jones, são vívidos, convincentes e nos deixam, a cada comentário dele na linha de que “isso não é suficiente para me convencer ainda”, com um sorriso mais largo no rosto.

É, literalmente, um dos raros momentos em que a exposição pura e simples consegue ser eficiente e bem inserida na narrativa, de maneira que nunca sentimos cansaço ou vontade de olhar o relógio. De certa forma, essa sequência lembra a integralidade do brilhante 12 Homens e Uma Sentença, que Sidney Lumet levaria aos cinemas dez anos depois, sendo quase que um ensaio para o filme com Henry Fonda.

Elia Kazan, já em seu terceiro filme, mostra completo domínio do meio, tirando de letra o desafio que foi transpor para as telas um roteiro tão eclético – mais muito bom – como o de O Justiceiro.

O Justiceiro (Boomerang!, EUA – 1947)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Richard Murphy (baseado em artigo na Reader’s Digest, de Fulton Oursler, escrevendo como Anthony Abbot)
Elenco: Dana Andrews, Jane Wyatt, Lee J. Cobb, Cara Williams, Arthur Kennedy, Sam Levene, Taylor Holmes, Robert Keith, Ed Begley, Philip Coolidge, Wyrley Birch, Reed Hadley
Duração: 88 min.

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