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Crítica | O Legado de Júpiter – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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Primeira série do chamado Millarworld, uma seleção de HQs autorais de Mark Millar da qual Kick-Ass faz parte, O Legado de Júpiter soma-se ao grupo seleto de séries de super-heróis que tenta desconstruir os super-heróis, algo que pode ser visto de maneira mais saliente em The BoysInvencível, mas também em algumas poucas outras como The Umbrella Academy, ainda que em níveis diferentes. Tendo, porém, trafegado pelas editoras mainstream (com maravilhas como Guerra Civil e Entre a Foice e o Martelo, Millar escreveu a maxissérie homônima entre 2013 e 2017 (período de tempo tão grande que ele ainda conseguiu lançar um prelúdio batizado de O Círculo de Júpiter no interregno) de forma a estabelecer uma eficiente ponte entre os valores super heroicos clássicos e os “modernos”, no que considero sua melhor obra fora da Marvel ou DC.

A transposição da HQ para o audiovisual, comandada por Steven S. DeKnight, responsável por nada menos do que a 1ª temporada de Demolidor no Netflix, é muito próxima ao material fonte, sendo até mesmo dividida em “volumes” e não “temporadas”, exatamente como acontece com a maxissérie (por razões que não mencionarei para não dar spoilers, claro), com a coragem inclusive de manter os uniformes espalhafatosos dos personagens originalmente desenhados por Frank Quitely, em um belíssimo e detalhado trabalho do departamento de figurino. No entanto, apesar de ter apenas oito episódios, esse início da história de passagem de bastão da primeira para a segunda geração de super-heróis nesse universo criado por Millar e que por si só emula o que vemos na clássica Reino do Amanhã, é errática na melhor das hipóteses, começando muito mal, ganhando um bom impulso logo em seguida, mas depois caminhando de forma claudicante e repetitiva até seu final.

Como a temporada é dividida em duas linhas temporais, uma passada hoje em dia, com os super-heróis mais velhos tendo que lidar com seus filhos poderosos que não mais acreditam em um “Código” que, dentre outras regras, estabelece que eles não podem interferir em políticas governamentais e não podem matar e outra passada a partir de 1929, com a queda da Bolsa de Nova York e começo da Grande Depressão, em que a origem da primeira geração é contada, a produção precisava nos fazer acreditar imediatamente que os atores eleitos para “atravessar” ambos os períodos – particularmente Josh Duhamel, Ben Daniels e Leslie Bibb – realmente os atravessaram e não que são eles mesmos com maquiagem ruim de envelhecimento. Há um efeito de “vale da estranheza” que é difícil de deixar passar, algo que afeta em demasia o começo, especialmente considerando o vai-e-vem temporal, mas que, com persistência, acaba sendo razoavelmente suavizado, mas nunca ao ponto de desaparecer por completo, o que é uma pena considerando a tecnologia prática e digital disponível hoje em dia, mas que, pelo que tudo indica, a produção preferiu não investir.

Ultrapassado em problema inicial, algo muito mais grave do que o CGI apenas razoável e que, sinceramente, não me incomoda, a narrativa consegue engrenar ao lidar com o tal Código que, segundo a percepção dos jovens super-heróis, não é mais aplicável hoje em dia, mas que Utópico (Duhamel que, não sei porque, só fala sussurrando…) insiste em manter inabalável. O conflito é mais claramente estabelecido pela relação do principal super-herói do mundo (representando o Superman, mas apenas com sua faceta de Escoteiro, assim como o Capitão Pátria é o mesmo herói, só que apenas com a faceta malvada) com seus filhos Brandon, ou Paragon (Andrew Horton) e Chloe (Elena Kampouris), o primeiro lutando para seguir os passos do pai e a segunda já tendo desistido disso há tempos e caminhando para o lado da fama e da entrega completa à esbórnia. Mas se a complicada relação entre pai e filhos, que revela problemas sérios de ambos os lados, é algo que os roteiros conseguem trabalhar com alguma eficiência, a diluição da força do Código é muito mais falada, muito mais explicada do que vista, o que nos obriga a primeiro aceitar a premissa (óbvia, se vista somente assim) e só depois, de maneira um tanto quanto desequilibrada, vermos na prática o que isso quer dizer.

No passado, o problema é mais grave. Apesar de um ótimo trabalho da direção de arte em reconstruir os anos 30 para criar uma aventura estruturalmente semelhante à desesperada procura pela Ilha da Caveira, que vemos em King Kong, simplesmente não há história suficiente ali para ser contada ao longo dos oito episódios. Os conflitos são artificialmente criados sempre a posteriori, a sucessão de obstáculos para chegar ao objetivo final lembra uma versão pouco imaginativa de Indiana Jones e assim por diante. Mas essa não é nem a questão principal. O ponto maior é que essa aventura no passado acaba detraindo da história no presente, impedindo que o ponto central da narrativa seja abordado a contento, ou seja, tornando rasa a discussão sobre a aplicabilidade do Código, especialmente seu mandamento “não matarás” e, de tabela, gerando um incessante e cansativo picotamento das duas linhas temporais graças a uma montagem que parece ter pouca coragem de deixar a ação em uma era transcorrer por mais do que cinco minutos de cada vez.

Afinal, se existe algo de realmente fascinante acontecendo hoje em dia nos filmes de super-heróis é a discussão entre o “fulano mata” e “fulano não mata” que muita gente acha que basta citar o quadrinho XYZ para provar uma coisa ou outra, deixando passar voando 10 metros acima o ponto nevrálgico: a violência é necessária para capturar a imaginação do público? E, apesar de eu ter paralelizado O Legado de Júpiter com The Boys e Invencível, a verdade é que a obra de Millar não usa a sátira para subverter os conceitos super-heróicos ou a própria narrativa clássica retorcida para trabalhar os clichês do gênero. O autor vai mais ao ponto ainda da discussão, algo que a série de TV, infelizmente, deixa passar muito ao largo demais, com uma repetição temática que insiste no Código constantemente, sem trabalhá-lo com profundidade. Sim, sabemos que matar é ruim, mas será que matar não é o “pão e circo” dos tempos modernos se olharmos metalinguisticamente? Dá para discutir infinitamente aqui sobre isso – o que não farei, claro – chegando até mesmo ao ponto de arguir se The Boys e Invencível só fazem o sucesso que fazem por serem explicitamente violentas e não exatamente pelo simbolismo dessa violência explicíta…

Portanto, mesmo com seus bons momentos, O Legado de Júpiter falha ao cortar a bola que levanta. Talvez só levantar a bola já seja o suficiente – gostaria muito de acreditar que sim – e talvez haja uma melhora significativa quando o segundo volume for ao ar, melhora essa que pode até curar parte dos problemas detectados aqui, mas, pelo momento, a série parece tentar fazer muita coisa, sem conseguir fazer quase nada. A obra-prima autoral de Mark Millar, infelizmente, acaba ganhando uma versão televisiva que fica ali na incômoda linha da mediocridade, ainda que oscile loucamente para cima e para baixo dela ao longo de sua duração.

O Legado de Júpiter – 1ª Temporada (Jupiter’s Legacy – EUA, 07 de maio de 2021)
Desenvolvimento: Steven S. DeKnight (com base em criação de Mark Millar e Frank Quitely)
Direção: Steven S. DeKnight, Christopher J. Byrne, Charlotte Brändström, Marc Jobst
Roteiro: Steven S. DeKnight, Henry G.M. Jones, Morenike Balogun Koch, Akela Cooper, Kate Barnow, Sang Kyu Kim, Julia Cooperman
Elenco: Josh Duhamel, Ben Daniels, Leslie Bibb, Andrew Horton, Elena Kampouris, Mike Wade, Matt Lanter, Gracie Dzienny, Tyler Mane, Meg Steedle, Richard Blackburn, Tenika Davis, Tyrone Benskin, Aiza Ntibarikure, David Julian, Ian Quinlan, Conrad Coates, Kara Royster, Kurtwood Smith, Paul Amos, Nigel Bennett
Duração: 359 min. (oito episódios)

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