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Crítica | O Leopardo das Neves

A Natureza está sempre um passo à frente do Homem.

por Michel Gutwilen
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Existe um momento em O Leopardo das Neves no qual o fotógrafo especializado em tirar fotos de animais raros na natureza, Vincent Munier, comenta que o olho humano não foi feito para ver tudo. Partindo desta premissa, é possível pensar que a existência deste filme e a ida da diretora Marie Amiguet ao Tibete se dão por essa razão: reconhecer que o Cinema e sua tecnologia podem chegar onde os olhos não costumam alcançar. O zoom permite que se enxergue de longe, mais do que um binóculo ou o próprio olho humano, ao mesmo tempo que preserva a vida do seu cineasta em uma situação de risco; o modo noturno permite a câmera enxergar aquilo que o olho jamais olharia durante a noite; a própria resolução em “high definition” da imagem parece ser uma espécie de evolução em relação ao olhar natural. Bem, até aí, nada diferente do que ligar a TV para ver Discovery Channel para ter um deleite visual com filmagens da natureza (de fato, o filme é bem belo e transcendental).

Contudo, o que vai se descobrindo a partir deste estudo da natureza e dos animais é que muitas vezes eles possuem a capacidade de superar a própria tecnologia. Um exemplo é quando Munier relata ter tirado a foto em alta definição de um pássaro, parado em um terreno rochoso, e só meses depois ele reparou que, ao fundo, havia um leopardo camuflado ao fundo. Ou seja, nem o olho da lente mecânica foi capaz de vencer os mecanismos de defesa da natureza. A partir daí e de tudo que ocorre no filme, é possível chegar a uma conclusão: o aparato tecnológico e o olhar, manejados pelo homem, não são neutros, mas um objeto de poder e que possuem uma violência inerente no próprio gesto de apontar a câmera. 

Ora, há contrastes muito claros em Leopardo das Neves que ajudam a chegar até este pensamento: tanto no exemplo citado acima como em outros momentos, os animais, ao notarem que estão sendo observados por alguém, sentem uma violação de sua privacidade e entram em uma posição defensiva, deixando de agir naturalmente. Por outro lado, quando Amiguet deixa sua câmera abandonada e ligada em um local por dois dias, o animal que leva o título do filme, tão raro de se achar, aparece aleatoriamente na frente da câmera, sem se importar com sua presença ou considerá-la uma ameaça. Afinal, qual a diferença? A presença humana por trás das câmeras. 

Ainda neste sentido, é fundamental observar que a diretora não só direciona o olhar de sua câmera com a intenção de registrar a natureza e os animais, mas também para o fotógrafo Munier e seu colega, o romancista Sylvain Tesson. Deste modo, é estabelecido um jogo de paralelismo, que busca estudar tanto o que é observado (a natureza) como quem observa (o homem), refletindo sobre como o Cinema media esse encontro — O Leopardo das Neves é quase um sucessor espiritual de O Homem Urso (2005), de Werner Herzog

Por exemplo, é com o mesmo interesse que ela captura os animais se camuflando na natureza, fugindo do olhar desses homens, e os próprios métodos de camuflagem de Munier para conseguir tirar fotos sem ser detectado. Logo, é como se a câmera observasse pacientemente esse jogo de xadrez no qual cada adversário faz seu movimento. Igualmente, se o olhar da câmera também “viola” a privacidade daqueles animais em seu habitat, pode-se dizer que ela faz o mesmo com Tesson e Munier, uma vez que Amiguet existe enquanto uma figura invisível, sempre ao lado dos dois homens, mas em nenhum momento há uma participação direta da realizadora diante das câmeras ou até em voice-over.

Assim, O Leopardo das Neves existe como uma mediação entre os desejos utópicos de sua diretora mas também das limitações impostas pelo acaso e as circunstâncias fáticas. Não existe aqui a possibilidade de falar de uma mise-en-scène 100% planejada, porque um dos maiores atributos do filme, é celebrar em sua essência o surgimento do acaso (seja a sorte ou o azar) e como ele pode influenciar na captura de imagens, em um constante jogo que exige da diretora uma rápida readaptação e improviso das imagens diante do que acontece na sua frente. 

No fim, por mais que o homem tente controlar a natureza e “domá-la” para dentro do Cinema, é ela que, no fim das contas, permite que o próprio filme exista, com o surgimento do “leopardo das neves” ao acaso, mostrando que não há como se planejar ou definir aquilo que é incontrolável. Como o próprio Munier, enquanto a sociedade moderna existe no ritmo do “tudo-aqui-agora”, esta narrativa isolada do mundo existe no ritmo do “nada-talvez-nunca”, uma vez que sua feitura se dá num lento jogo de espera em busca de um animal que não pode nunca aparecer. Resta confiar em forças maiores. 

Talvez por isso o final de Leopardo das Neves seja tão potente emocionalmente, justamente pela consciência de que sua aparição se dá em uma circunstância quase que milagrosa, como o destino quisesse que aqueles homens cruzassem frontalmente com aquele animal raro no mundo. Se o plano e contraplano de uma troca de olhares é um dos recursos mais usados da história do Cinema, seu uso aqui é especial, pois ele ressignifica toda a lógica do filme em mostrar esses homens tentando estar um passo à frente da natureza. O contraplano não é o leopardo das neves, mas sim o homem. Se ele achou que estava observando esse tempo todo, na verdade era ele que estava sendo observado. Com seu olhar de superioridade que é mais significativo do que qualquer palavra dita, aquele animal tão majestoso deixa claro: os verdadeiros selvagens somos nós.

O Leopardo das Neves (La panthère des neiges, 2021) — França
Direção: Marie Amiguet
Roteiro: Marie Amiguet, Vincent Munier
Elenco: Vincent Munier, Sylvain Tesson
Duração: 92 mins.

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