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Crítica | O Livro de Memórias, de Lara Avery

por Cida Azevedo
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Para qualquer pessoa, a ideia de perder a memória parece aterrorizante: esquecer os próprios sonhos, pessoas queridas, personalidade… Apesar de soar tanto assustadora quanto cinematográfica, a perda de memória é um sintoma real em várias patologias – inclusive na chamada NP–C, doença genética da qual Samantha McCoy se descobre vítima durante a adolescência. Para ela, porém, essa possibilidade ganha contornos ainda mais terríveis: prestes a se formar no colégio, Sammie faz parte do clube de debates da escola, já foi aceita na NYU para cursar Direito e realizar seu maior sonho – sair da pequena cidade onde vive com a família. A possível perda de memória significa abrir mão de tudo o que ela é: oradora da turma, futura advogada, mulher independente. E ela não está disposta a deixar isso acontecer. Surge, então, O Livro de Memórias, espécie de diário em que a garota registra tudo o que possa ser importante e, principalmente: que não deve ser esquecido.

O tema da memória como parte essencial do ser é uma das características mais marcantes do romance juvenil de Lara Avery, que traz questões interessantes ao público ao qual se destina. A ideia da definição do “eu” em essência já rendeu muitas páginas na filosofia. Seria o pensamento o que determina a individualidade do ser? A memória? O desejo? Para Sammie McCoy, sua memória – de forma mais abrangente, sua mente – é o que ela possui de maior importância. E é extremamente comovente acompanhar a trajetória dessa jovem que, na realidade, tem medo de desaparecer, e assiste a perda de controle gradativa sobre seu corpo, sua mente e sua vida. Embora tenha conflitos normais às meninas de sua idade – amizades, namoros, escola, família – Sammie tem de lidar com algo muito mais complexo, e se empenha em provar que é capaz disso.

O Livro de Memórias não é excepcional. Porém, no contexto da literatura YA (young adult, ou seja, para “jovens adultos”), é possível dizer que está acima da média. Além de lidar com emoções mais complexas que o usual do gênero, há um inesperado cuidado formal em alguns momentos, com destaque para trechos do diário que Sammie escreve durante crises causadas pela doença. Avery muda completamente a forma nesses episódios, revelando um fluxo de consciência desordenado bastante condizente com a situação da personagem. Consequentemente, consegue, também, causar no leitor a sensação de desconforto e até mesmo de desespero vivida pela protagonista. De certo modo, é a forma da escrita que permite ao leitor sentir com mais vivacidade o que é tratado no conteúdo. Infelizmente, não é uma história feliz – o que, diga-se de passagem, também parece atrativo para o público-alvo; basta lembrar de sucessos como A Culpa é das Estrelas e Um Amor Para Recordar, também narrativas sobre doenças terríveis vividas por jovens. Aparentemente, não há idade para a catarse de Aristóteles.

 Outro ponto relevante do romance é a construção da personagem Sammie, não só nas questões fundamentais, como seus projetos futuros e sua maneira de lidar com a doença, mas também em detalhes que podem ser desejáveis e instrutivos para jovens leitores: Sammie traz várias referências interessantes em seu diário, normalmente sobre coisas de que gosta. Há de referências literárias – até José Saramago é citado! – a ícones feministas. Sempre surge a esperança de que livros assim despertem seus leitores para obras que se encontram fora da sua zona de conforto, claro. Não nos esqueçamos de que muitos adolescentes leram O Morro dos Ventos Uivantes após seu aparecimento na saga Crepúsculo. Pode ser um desejo utópico, mas em tempos de livros de youtubers e afins, uma obra juvenil que apresente um pouco de cuidado formal e referências interessantes já soa bastante atrativo.

Ao longo do romance, ocorre também uma mudança de perspectiva bem bacana. Sammie, a garota que quer sair de sua pequena cidade mais do que tudo na vida, começa a redescobrir lugares e amigos de infância, e a perceber que a ideia de sucesso que cunhara para si mesma não é a única possibilidade de felicidade. A típica arrogância adolescente vai cedendo lugar a uma maturidade forçada pela doença, e que ao mesmo tempo ajuda a enfrentá-la. À medida que Sammie começa a ver com outros olhos os pais, a cidade e a vida que ali se leva, é inevitável ao leitor também se questionar sobre as metas que já estabeleceu para si mesmo e por que assim o fez. Dessa forma, o livro despretensiosamente alcança algumas das funções mais necessárias da literatura: levar o leitor à reflexão, quebrar preconceitos, criar empatia.

É claro que, para um leitor habituado a leituras mais complexas ou mais “adultas”, O Livro de Memórias não vai ser tão marcante. Ainda assim, pode ser uma boa leitura, desde que não se crie muitas expectativas a respeito. Vale ressaltar que, dentro do gênero ao qual pertence, com certeza se destaca entre outras obras infinitamente mais superficiais – e, portanto, é uma ótima leitura para quem procura um YA de qualidade. Comovente, apesar de um pouco clichê, o livro cumpre bem sua proposta. À la John Lennon, a história de Sammie mostra que a vida é aquilo que acontece enquanto você está preocupado fazendo outros planos.

O Livro de Memórias (The Memory Book) – EUA, 2016
Autor: Lara Avery
Publicação no Brasil: Editora Seguinte, 2016
Tradução: Flávia Souto Maior
348 Páginas

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