Home FilmesCríticas Crítica | O Lodo (2020)

Crítica | O Lodo (2020)

por Kevin Rick
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Obras surrealistas normalmente abordam a relação entre sonho e realidade absoluta – a supra realidade, que transcende o realismo comum – valorizando o inconsciente sobre o concreto. O irracional ao invés do coeso. Não que não exista lógica dentro do absurdo, mas sua concepção é produzida numa vertente alegórica. É a expansão da imaginação do espectador para o universo onírico. Do outro lado do espectro encontra-se a banalidade, que representa o lado ordinário da sociedade e a vida quotidiana. A normalidade diária, que tantos artistas e espectadores tentam evitar, encontrando na arte um escapismo da realidade muitas vezes entediante. Mas isso não significa que não exista valor artístico no comum. Pelo contrário, existe muito a se aprender com obras que retratam o cotidiano humano, em sua reflexão da rotina que molda nossas vidas. Juntar tais conceitos em uma obra seria a receita para algo, no mínimo, interessante.

O cineasta Helvécio Ratton evoca – ou pelo menos tenta – esse conjunto de ideias em O Lodo, adaptado do conto de Murilo Rubião. A fita conta a história de Manfredo (Eduardo Moreira), um homem conformado com sua vida comum, e que se diz feliz com sua independência conjugal e vivência rotineira. Mas após se sentir um pouco deprimido, decide buscar tratamento profissional com o Dr. Pink (Renato Parara). O psiquiatra versa que Manfredo tem um lodo interno, resultado de traumas e conflitos do passado, deixando seu paciente irado. O protagonista decide abandonar o tratamento, mas o diagnóstico serve como gatilho para uma série de bizarrices em sua vida. A mais notável de todas: sangue – ou é lodo? – saindo de seus mamilos.

Apesar da estranha imagem que acabou de ser imposta em sua mente, a metáfora da película, se observada superficialmente, é bem simples. Os traumas infantis, problemas internalizados, emoções suprimidas, todos se misturam e criam esse lodo. Como consequência, o protagonista projeta esse lodo na tristeza, negando o conhecimento de sua origem, com medo de enfrentar seus demônios internos, caindo lentamente no abismo da depressão, um dos maiores problemas da sociedade contemporânea. O cineasta tenta dar mais camadas para a rasa premissa, como navegar na psicanálise freudiana, na desinibição dadaísta, mas que ao contrário da ressignificação de objetos, usa sintomas psíquicos transformando-se em características físicas. Há também o surrealismo posto nas pessoas a sua volta, desde a perseguição do Dr. Pink e sua secretária, a decisões judiciais completamente sem sentido contrárias a Manfredo, reforçando que sua psique quebrada modifica o seu entorno.

Esse enfoque na linguagem figurativa que Ratton usa termina por danificar o longa, pois se esquece completamente de demonstrar o ordinário de Manfredo. O contraposto da banalidade com o surrealismo é o gatilho inicial do primeiro ato, após sua conversa com Dr. Pink, mas o diretor decide enamorar-se pelo fantástico, esquecendo de desenvolver o comum. Não há (além de pequenos flashbacks mal explicados) construção do desgaste rotineiro que levou à depressão de Manfredo, ou desenvolvimento dos traumas que levaram à constituição do lodo.

E já que Ratton decide pela estética sobre a substância, a forma como constrói o ritmo do filme quebra qualquer tentativa de criação de uma obra totalmente alegórica. O arco de Manfredo é basicamente dividido em três partes: o trivial sendo absorvido pela tristeza, resultando em sua consulta, que é o estopim para o segundo arco, no qual o protagonista fica em negação do surrealismo ao seu redor, e, enfim, o clímax na parte final da fita. Já que, aparentemente, o diretor quer construir uma fábula estilizada, há pouca construção inicial da futilidade e quase nenhuma resolução dos flashbacks no curto clímax, quando o protagonista está à beira da destruição mental e física. Dessa forma, grande parte do filme é focada no segundo ato, no desmantelamento psicológico de Manfredo. Mas por ele sempre estar em dúvida ou negação, a fita nunca entra de cabeça no absurdo, ela apenas navega até o ato final. Essa indecisão seria interessante se houvesse a composição do contraposto da realidade e do banal com a articulação do passado sinistro de Manfredo, mas como não há, a obra se torna desconexa e arrastada.

A produção ganha pontos pela direção mais panorâmica, optando por um estilo mais enquadrado e as cores mais acinzentadas que ajudam a criar o ambiente temático que o filme precisa. Os atores, do Grupo Galpão, são espetaculares, principalmente Eduardo Moreira que interpreta Manfredo, vendendo muito bem a imagem do homem comum, sem qualidades, em descendência psicológica, desesperado por ajuda, mas orgulhoso – e também confuso – demais para pedi-la. Mas nada disso eleva o filme o suficiente para o patamar em que deveria estar. Helvécio Ratton cria boas temáticas mas se perde na linguagem que quer retratar, faltando forma no absurdo. O Lodo é uma obra que não decide se quer ser o retrato surrealista da banalidade e da culpa, ou se quer morar apenas no bizarro.

O Lodo (Brasil – 2020)
Direção: Helvécio Ratton
Roteiro: Helvécio Ratton , L.G. Bayão (baseado em conto de Murilo Rubião)
Elenco: Eduardo Moreira, Renato Parara, Inês Peixoto, Rodolfo Vaz, Fernanda Vianna, Mario Cesar Camargo, Maria Clara Strambi, Cláudio Márcio
Duração: 98 min.

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