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Crítica | O Milagre

Acreditando na mentira.

por Kevin Rick
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Em O Milagre, adaptação do livro homônimo de Emma Donoghue, acompanhamos Florence Pugh interpretando Lib Wright, uma enfermeira inglesa que é convocada por um comitê irlandês em busca de respostas sobre uma garota local que não come há quatro meses. A jovem se chama Anna O’Donnell (Kíla Lord Cassidy), uma menina de nove anos que afirma sobreviver apenas com o maná do céu, se tornando uma espécie de milagre para adoradores locais. Lib é contratada para apenas observar este estranho evento, e descobrir se Anna está recebendo comida de alguma forma. Como uma mulher da ciência, a protagonista é completamente cética à situação. Ela só não esperava que sua investigação revelaria verdades terríveis que abririam suas próprias cicatrizes do passado.

A produção de época se passa no século 19, mas o filme começa em um cenário contemporâneo de um estúdio de filmagem, sob a narração de uma personagem que nos encaminha para a história em 1862. É um início esquisito, sem muito contexto. Te faz questionar se há alguma proposta metalinguística no longa ou se a abertura é apenas uma sacadinha sem intuito do diretor Sebastián Lelio. Considerando que esse conceito de “autoconsciência ficcional” é trabalhado em pequenas doses no filme, com um voice-over ali e uma quebra de quarta parede aqui, estou mais inclinado para o argumento de que Lelio é um pouco arbitrário no uso deste “recurso” que nada agrega à história.

Uma possível interpretação seria a de que o cineasta está nos convidando a acreditar nessa história, mesmo que tudo seja uma mentira (ficção), se vinculando ao conflito da protagonista de ciência vs religião; se acredita neste “milagre” ou tenta desmistificá-lo. É uma interpretação meio forçada, considerando que Lelio pouco desenvolve essa proposta meta, mas há uma ligação com a força temática da obra: um drama sobre crenças e realismo. Também há uma conexão entre o papel de Lib e o da audiência, que estão ali para apenas observar a história dessa garotinha que não come, e tirar suas próprias conclusões.

É nessa ideia central que Lelio articula um bom filme de drama psicológico em torno de fé e ceticismo, se esquecendo da brincadeira meta sem muito sentido. A narrativa tem um ritmo de queima lenta, aos poucos desdobrando a verdade por trás do “milagre” de Anna com um sentimento de aflição e intriga. Gosto muito de como o cineasta usa enquadramentos centrais e fechados que enfatizam o desespero da protagonista, sempre com ótimo trabalho de Pugh com pequenas feições e nuances de angústia. Kíla Lord Cassidy, a intérprete da garotinha, também ganha espaço para brilhar com uma personagem que é misteriosa e vulnerável.

Ainda que a história não mergulhe no sobrenatural, há muitos elementos de horror bem trabalhados. A localidade em uma zona rural e interiorana sempre traz aquela sensação de bizarrice e de incômodo com o povo retrógado e fanático, apesar de muitos personagens coadjuvantes não serem aproveitados. Lelio tem uma trabalho meticuloso e particular com encenações enigmáticas que carregam a sensação de que algo vai acontecer ou então de desnorteamento com a “vigilância”, auxiliado pelo excelente compositor Matthew Herbert, que evita peças de época em favor de algo mais desconfortável com cordas, grunhidos e sons da natureza. O cineasta consegue deixar os espectadores tão inquietos quanto Lib, ao percebermos que fomos convidados a testemunhar a morte de uma criança.

O debate sobre fundamentalismo, fanatismo e crenças não é desenvolvido para além da básica cegueira religiosa, mas O Milagre constrói com calma uma história desesperadora, principalmente quando a verdade vem à tona como um soco no estômago tanto de Lib quanto da audiência. Não há grandes destaques narrativos ou profundidade dramática para elevar a obra a um patamar de excelência, tampouco grandes reflexões sobre a velha discussão de ciência vs religião, mas Lelio tece um intrigante exame da verdade e de empatia. Apesar do final extremamente mal calculado com a fuga de alguns personagens, aprecio como Lib precisou se comprometer à mentira de Anna para salvá-la, além do desfecho otimista deixar um sabor tranquilo para todo o desconforto que sentimos ao longo da história.

O Milagre (The Wonder) | EUA, 16 de novembro de 2022
Direção: Sebastián Lelio
Roteiro: Emma Donoghue, Sebastián Lelio, Alice Birch (baseado no livro homônimo)
Elenco: Florence Pugh, Tom Burke, Niamh Algar, Elaine Cassidy, Dermot Crowley, Brían F. O’Byrne, David Wilmot, Ruth Bradley, Caolán Byrne, Josie Walker, Ciarán Hinds, Toby Jones, Kíla Lord Cassidy
Duração: 115 min.

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