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Crítica | O Mistério de Picasso

Um milagre do Cinema.

por Fernando JG
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É sempre uma curiosidade saber por onde começa uma obra de arte. Pergunto-me: como são elaborados momentos que significam, para a cultura, a apoteose da arte? Gostaria de ser uma mosca para ver o dilema criativo que concebe episódios como a invenção do pacto no Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e no Doutor Fausto, de Thomas Mann; o início e finalização de um poema como A Máquina do Mundo, de Drummond; o delírio de Brás Cubas em Memórias Póstumas de Brás Cubas, ou mesmo ter acesso ao processo de produção do emblemático artigo Amor e Medo, de Mário de Andrade, quando analisa Álvares de Azevedo. 

O Cinema é divino quando consegue eternizar atos através do gênero documental e mostra isso, por exemplo, em The Beatles: Get Back, que nos revela passo a passo da composição de canções como Get Back e I’ve Got a Feeling. O Mistério de Picasso, longe de ser uma obra palatável ao gosto geral, concentra-se numa intromissão no método criativo de Pablo Picasso, desvelando, através de uma câmera estática em plano-sequência que enfoca apenas a tela, cada etapa do processo pelo qual se dá a feitura de suas telas, isto é, o seu método. E esse registro é impagável. 

Dirigido por Henri-Georges Clouzot e organizado por Claude Renoir, que atua na cinematografia geral, Le Mystère Picasso não é um mistério, mas um milagre do Cinema e o triunfo do fotograma. Uma metalinguagem, o filme de Clouzot coloca o maior artista plástico do século XX de frente para uma tela em branco enquanto o assiste trabalhar livremente. Sugere, então, que Pablo Picasso apenas exerça o seu gesto criativo. O dono de Guernica e Mulher sentada junto de uma janela, num período de pouco mais de cinco horas, cria umas trinta telas com técnicas invejáveis e um manejo estético de tirar o fôlego. 

Observamos com surpresa que um ponto disforme no meio de uma folha em branco transforma-se, numa junção de traçados nada uniformes, na figura de um amante cravando no peito de sua amada uma espada, enquanto ela, deitada, esparrama-se num movimento de beleza e ele, com o objeto na mão, a contempla. Somos convidados a isto: a contemplar a criação. O mistério da criação. 

Há situações em que a pintura é interrompida ou por conta de que acabou a tinta, ou porque a fita (lê-se película ou filme) está se encerrando. Logo muda-se o foco da câmera e vemos Picasso conversando com Renoir e Clouzot sobre coisas triviais. Essas cenas, embora banais, conferem uma espécie de intimismo à obra e nos aproxima dos personagens. As cenas extra-pintura conseguem humanizar a mente por trás das telas e então vemos um artista, Picasso, de shorts, sem camisa, de chinelos e fumando um cigarro. Não há reflexões pedantes sobre a arte, mas apenas uma exposição constante dos desenhos feitos. Isso é o mais interessante: entrega-se de maneira crua o ápice das artes plásticas e a discussão a respeito das telas fica por conta de quem as vê. 

Algo que se nota é a maleabilidade do traçado que concebe o desenho. Nunca é estático. Quando se desenha o formato de uma flor, ela logo se converte numa cabeça de galinha, que torna-se em seguida num peixe, e então Picasso sobrepõe, num exercício de montagem cubista, um desenho sobre o outro. Uma coisa, no entanto, é ver o desenho acabado, outra é ver a sua produção. Como observamos, nada é permanente e um desenho se sacrifica imediatamente pelo seguinte, até que se dê uma forma acabada de um todo – uma forma acabada mas que pode ser desmanchada a qualquer momento, como há no último quadro.

É a experimentação estética das vanguardas do século XX na sua forma mais perfeita sendo mostrada através do Cinema numa película que é a revolução dos filmes de arte. É de surpreender que o disforme se torne uma mimese perfeita do objeto no qual está tentando reproduzir. Junto a isso, a trilha sonora perfeitamente dramatiza o movimento da pintura, acompanhando cada gesto e se conectando de maneira rítmica ao tema das telas. 

Quando a tinta preta dá lugar para a tinta a óleo, a cinematografia de Claude Renoir brilha. Ele opõe a fixidez que se via até então a uma forma de desenho animado, num movimento veloz de montagem dos fotogramas, nos dando um efeito de ação a partir dos desenhos de Picasso. Aqui a mão do Cinema age em cheio, para além das figuras cubistas desenhadas na tela. Numa análise brilhante feita por Bazin a respeito desse fita (Bazin, Um filme Bergsoniano: O mistério de Picasso, 1991), observamos uma sentença que encerra a discussão, uma vez que o crítico nota que o “cinema não é aqui mera fotografia de uma realidade preliminar e exterior. Ele, o cinema, está intimamente organizado em simbiose estética com o evento pictórico”. É isso: o filme e a pintura agem como se formassem um só quadro, uma nova arte. 

O Mistério de Picasso é revolucionário por diversas razões, a começar por ser um documentário que não intenciona ser didático, mas expositivo e contemplativo puramente, como se observássemos uma peça de arte; e também porque faz do filme a pintura, e da pintura, filme; e igualmente porque expõe, por um trabalho de gênio que são as figuras esboçadas nos quadros, um ofício genial que é a realização do filme e tudo que ele propõe como forma e conteúdo; por fim, a sua carta mestre: a destruição de todos os quadros após as filmagens, fazendo da película o único meio de acessar essas produções. Como disse anteriormente: a pintura se faz cinema e igualmente o contrário. Picasso e Clouzot se colocam como mestres, premiando a todos nós com um filme que, sem precedentes, jamais poderá ser replicado. Um marco.

O Mistério de Picasso (Le Mystère Picasso, França, 1955)
Direção: Henri-Georges Clouzot
Roteiro: Henri-Georges Clouzot
Elenco: Henri-Georges Clouzot, Claude Renoir, Pablo Picasso.
Duração: 78 min. 

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