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Crítica | O Monstro de Duas Faces

por Rafael Lima
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O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, é uma das obras de terror mais adaptadas da literatura. O Sr. Hyde, a persona maligna do Dr. Jekyll, entrou para o imaginário popular como este homem visualmente horrendo e muitas vezes animalesco, como no clássico O Médico e o Monstro de 1931. Mas em 1960, Terence Fisher, em mais uma parceria com a Hammer Film trouxe uma versão bem atípica desta clássica história. A principal diferença do filme de Fisher em relação a outras leituras da obra de Stevenson é a forma como ele escolhe retratar o mal. Em O Monstro de Duas Faces, o mal não é repulsivo, mas simpático e sedutor, e justamente por isso, extremamente perigoso. 

Na trama, situada em 1874, o Dr. Jekyll (Paul Massie) é um cientista obcecado por suas pesquisas sobre a mente humana, o que o faz viver uma vida reclusa, negligenciando a sua esposa Kitty (Dawn Addams), que tem um caso com o amigo do marido, Paul Allen (Christopher Lee). Quando Jekyll acredita ter descoberto uma fórmula capaz de isolar os elementos conflitantes da mente humana, ele a testa em si mesmo. Mas ao fazer isso, libera a sua persona maligna, o Sr. Hyde (também Massie), um homem charmoso e carismático que se considera acima do bem e do mal e que passa a buscar prazer sem limites, não importando quem tenha que corromper ou destruir para isso.

Escrito por Wolf Mankowitz, O Monstro de Duas Faces nos traz uma versão diference do Dr. Jekyll e de seu alter ego. Nesta versão, Jekyll é uma figura menos simpática, sendo um homem antissocial que mantém uma relação fria e distante com a esposa, estando mais interessado em tubos de ensaio do que em pessoas. Este é um homem flagrantemente desconfortável com o seu papel social, tornando mais orgânico os motivos que o levam a se sentir atraído pela vida que Hyde oferece. Já o Sr. Hyde é retratado como alguém carismático e sedutor, que chama a atenção de todos ao entrar em um local. Como em outras versões, Hyde não se importa em recorrer à violência, mas está mais inclinado a usar a sua lábia e esperteza para conseguir o que quer. O vilão não só busca o próprio prazer, mas está interessado em testar os limites morais daqueles à sua volta. A narrativa apresenta uma natureza mais pessoal (se é que é possível) para o conflito de Jekyll e Hyde, pois ao interferir no triângulo amoroso do cientista com a sua esposa e Paul, fazendo as coisas terríveis que intimamente o médico tem vontade de fazer, Hyde quer provar para o seu alter ego que ele é irrelevante.

As escolhas estéticas da obra também trabalham com o dualismo, começando pelo visual do protagonista. Diferente de outros atores que encarnaram esses personagens, Massey interpreta Hyde de cara limpa, enquanto usa maquiagem para viver Jekyll — uma opção que conversa com a proposta de retratar o cientista como alguém retraído e antissocial –, e Hyde como essa figura atraente e expansiva. Essa opção também se reflete nos ambientes frequentados pelos personagens. A casa e o laboratório de Jekyll são monocromáticos e quase sem vida, enquanto a boate onde Hyde gasta suas noites é cheia de cores, soando propositalmente exótica para o período em que a trama se passa. Fisher traz aqui uma direção muito mais discreta do que em seus filmes anteriores na Hammer. A violência é colocada na tela de forma sutil e o erotismo, ainda que bastante presente, surge de forma mais calculada e com um objetivo maior dentro da trama. As cenas de transformação do cientista também ocorrem todas fora da tela, mas o diretor consegue usar essa limitação para criar um suspense bastante elegante, como no plano detalhe onde vemos a mão de Jekyll escrevendo em seu diário, para então a caligrafia e o texto começarem a mudar subitamente, revelando então que ele se transformou novamente no Sr. Hyde.

Paul Massey faz um bom trabalho no papel duplo do protagonista, vivendo Jekyll como um homem atormentado, introspectivo e irritadiço, cujo sofrimento se torna cada vez maior à medida em que se vê igualmente atraído e oprimido pelas ações de seu outro eu. Já para o Sr. Hyde Massey entrega uma interpretação mais expansiva, ao mesmo tempo trazendo um personagem mais confortável em sua própria pele. Este é um vilão que realmente se delicia com as monstruosidades que comete, mas é capaz de dissimular a sua real natureza atrás de puro carisma e autoconfiança, tudo o que Jekyll não tem. 

Dawn Addams tem a chance de viver uma personagem feminina bastante complexa para os padrões da Hammer, através de Kitty Jekyll, uma mulher em conflito com a própria consciência, dividida entre as suas obrigações sociais (e mesmo a sua própria moral) e a sua satisfação como mulher. É curioso observar que a Sra. Jekyll afirme em certo momento Não merecer nada melhor do que Paul, revelando certa auto aversão que cria uma conexão interessante com o arco principal do filme, e adiciona uma camada trágica à personagem. Por fim, Christopher Lee tem a chance de fugir um pouco dos papéis vilanescos e imponentes que o marcaram para viver um personagem mais vulnerável e inseguro. O Paul Allen de Lee decididamente é um homem mau-caráter, que mantém um caso com a esposa do amigo que constantemente paga as suas dívidas de jogo. Mas apesar de seus vícios e fraquezas, ele nutre sentimentos sinceros por Kitty, que acabam sufocados por seus demônios internos.

O Monstro de Duas Faces, embora tome uma série de liberdades em relação ao material original (como a maioria das adaptações da Hammer) é uma visão curiosa e instigante para a tão recontada história de Jekyll e Hyde. A obra defende que o mal nem sempre é repulsivo e horripilante; o mal muitas vezes é atraente e sedutor; usando nossas fraquezas e inseguranças contra nós mesmos. Terence Fisher entrega uma obra que explora a dualidade existencial dos conflitos humanos e as consequências trágicas de não aceitar esse conflito.

O Monstro de Duas Faces (The Two Faces Of Dr. Jekyll) – Reino Unido, 1960
Direção: Terence Fisher
Roteiro: Wolf Mankowitz (Baseado em romance de Robert Louis Stevenson)
Elenco: Paul Massie, Dawn Addams, Christopher Lee, David Kossoff, Norma Maria, Francis De Wolff, Joy Webster, Oliver Reed, Walter Gotell.
Duração: 88  min.

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