Será que, lá no fundo, ou às vezes nem tão lá no fundo assim, temos monstros escondidos em nós? Não falo de monstruosidades colocadas em prática somente, pois essas são facilmente detectáveis e condenáveis, mas alguma coisa que nos leva a pensamentos indizíveis, a ensaiarmos mentalmente respostas e caminhos que magoariam aqueles ao nosso redor ou a tomarmos decisões que podem ser até certas na superfície, mas por razões erradas? E a recusa em aceitar nossa parcela de responsabilidade por algo que aconteceu ou mesmo de enxergar que temos alguma coisa a ver com o ocorrido, mesmo que indiretamente? Como esquecer da passividade, não é mesmo? Aquela inação que perpetua monstruosidades por simplesmente ignorá-las, apesar de conscientes delas, não nos faz monstros também? O Monstro em Mim, minissérie do Netflix estrelada por Claire Danes e Matthew Rhys em papeis ao mesmo tempo opostos e complementares, faz essas e outras perguntas desconfortáveis sobre a natureza humana em um obra inquietante que transforma um thriller investigativo e psicológico em um exame de nossas falibilidades.
Em primeiro plano, a minissérie em oito episódios – quatro deles dirigidos pelo brasileiro-americano Antonio Campos, filho do jornalista Lucas Mendes – parece lidar com a dor da perda representada eminentemente pela escritora Aggie Wiggs (Danes) cujo filho pequeno morrera em um acidente automobilístico há quatro anos causado por um motorista embriagado e que, divorciada de sua esposa Shelley Morris (Natalie Morales) e morando sozinha – com exceção da companhia do cachorrinho Steve – em um casarão caindo aos pedaços em Long Island adquirido com o dinheiro do sucesso de seu primeiro e único livro, tenta escrever a história da improvável amizade entre os ministros da Suprema Corte dos EUA Ruth Bader Ginsburg e Antonin Scalia, de notórios posicionamentos opostos. No segundo e mais saboroso plano, a famosa relação entre Ginsburg e Scalia serve de antecipação ao que a própria Aggie passa a viver quando dois cachorros ferozes aparecem em sua porta para basicamente anunciar a chegada disruptiva do milionário dos empreendimentos imobiliários Nile Jarvis (Rhys) ao seu bairro e, não apenas isso, como seu vizinho mais próximo. Nile, casado com sua segunda esposa Nina (Brittany Snow), vive sob a sombra de ser inclementemente acusado pela opinião pública de ter matado Madison (Leila George), sua primeira esposa, que deixou um bilhete de suicídio, mas cujo corpo nunca fora encontrado, não demora e estabelece uma conexão hesitante e antitética – mas não tanto – com Aggie, chegando a sugerir que ela escreva um livro sobre ele, livro esse que seria muito mais interessante do que o que ela estava tentando – e falhando miseravelmente – escrever.
O primeiro episódio é carregado de informações, mas engenhoso na forma como ele as traz para a narrativa, muito naturalmente estabelecendo toda essa situação já em andamento, abrindo espaço para uma intensa Claire Danes mostrar o porquê de ser uma das maiores, mas injustamente menos festejadas atrizes de sua geração e também para Mathew Rhys construir um personagem de presença é ao mesmo tempo magnética e ameaçadora e que anda constantemente na linha da ambiguidade, além de nos apresentar à esposa de Nile, a galerista Nina, fazendo de tudo para agradar a todos, e ao agente do FBI desgrenhado e bêbado Brian Abbott (David Lyons) chegando do nada na casa de Aggie no meio da noite e de um temporal para avisá-la para tomar cuidado com Nile, dentre outras situações. Além disso, o cliffhanger é irresistível, pois, nele, há a bombástica revelação de que Teddy Fenig (Bubba Weiler), o jovem motorista embriagado responsável pela morte do filho de Aggie – que, de longe, Aggie apontara a Nile naquele mesmo dia, deixando bem claro o que ela sente pelo rapaz – se suicidara, mas cujo corpo ainda não fora achado, o que serve também de um espertíssimo gatilho narrativo para levar Aggie a uma espiral de paranoia sobre Nile que a faz aceitar a tarefa de escrever sobre a vida do magnata com o objetivo maior e secreto de investigá-lo.
Os três episódios seguintes são verdadeiras obras-primas na forma como eles conservam a ambiguidade sobre Nile Jarvis, com Rhys abraçando com vigor seu personagem e na forma como são abordadas todas as manobras corporativas e políticas ilegais que ele e seu pai Martin (Jonathan Banks sempre excelente e particularmente ameaçador aqui), com a ajuda de seu tio Rick (Tim Guinee), também seu segurança, colocam em movimento para garantir a construção de um novo e gigantesco empreendimento imobiliário. Mas que ambiguidade, vocês perguntarão, se fica evidente logo na largada que Nile é um ricaço coberto de sujeira como tantos outros por aí na ficção e na realidade? Falo, claro, da ambiguidade sobre o desaparecimento de sua primeira esposa e sobre o desaparecimento – em circunstâncias idênticas – de Teddy, com a crescente conexão entre Aggie e o agente Abbott só servindo para colocar mais lenha nessa fogueira. Como mencionei, a relação entre Aggie e Nile assemelha-se à uma versão doentia da amizade entre Ginsburg e Scalia, com os dois se aproximando em uma mistura de admiração mútua e uma sensação de que, talvez, um complemente o outro por talvez um se enxergar no outro. É realmente fantástico ver Danes e Rhys tanto separadamente como especialmente contracenando na minissérie como dois personagens com questões psicológicas mal resolvidas que, quando misturadas, fazem o caldeirão ferver.
A minissérie, porém, perde sua força a partir do quinto episódio em razão do desaparecimento da tão bem trabalhada ambiguidade. Não vejo como os roteiros poderiam continuar de outra forma, a não ser que o objetivo fosse não chegar a resolução alguma, mas é sensível como Nile e Aggie são diminuídos como personagens quando eles ficam às escâncaras em suas intenções. Não é nem de longe um problema sério, apenas uma constatação de que os protagonistas brilham menos quando nós, espectadores, temos certeza do que esperar deles, algo que é natural em qualquer filme ou série, mas que, aqui, talvez apenas para mim, não sei, ficou mais evidenciado, mais em primeiro plano. Além disso, a resolução, empurrada para o derradeiro episódio como de praxe, é corrida e muito simples e fácil demais, quase que banal. E não é nem uma questão de ela ser previsível, pois eu não ligo nem um pouco para previsibilidade – ao contrário, isso é um sinal de boa lógica interna -, mas sim de como ela depõe contra a intrincada construção psicológica que os roteiros se esmeraram em erigir e que a direção de Antonio Campos nos dois primeiros e nos dois últimos capítulos, e de Tyney Rafaeli e Lila Neugebauer, cada um à frente de dois, souberam levar intensamente para as telinhas.
Mesmo com um final aquém de seu potencial, O Monstro em Mim entrega a Claire Danes e Matthew Rhys dois grandes papéis em que a dupla mergulha com profundidade, além de, claro, nos permitir ver Jonathan Banks sendo muito bem aproveitado mais uma vez. A minissérie pergunta sobre nossa monstruosidade inata e não se acanha em oferecer uma miríade de respostas em que certamente muitos de nós se encaixarão de uma forma ou de outra, mesmo se nos recusarmos a aceitar o preceito.
O Monstro em Mim (The Beast in Me – EUA, 13 de novembro de 2025)
Criação: Gabe Rotter
Showrunner: Howard Gordon
Direção: Antonio Campos, Tyne Rafaeli, Lila Neugebauer
Roteiro: Gabe Rotter, Daniel Pearle, Erika Sheffer, C.A. Johnson, Ali Liebegott, Mike Skerrett, Howard Gordon
Elenco: Claire Danes, Matthew Rhys, Brittany Snow, Jonathan Banks, Natalie Morales, David Lyons, Tim Guinee, Deirdre O’Connell, Bubba Weiler, Hettienne Park, Aleyse Shannon, Julie Ann Emery, Amir Arison, Leila George
Duração: 392 min. (oito episódios)
