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Crítica | O Mordomo da Casa Branca

por Luiz Santiago
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Quatro-estrelas

A História é pop. Sempre foi. Relatos de guerras famosas, biografias de figurões, sagas, invenções e inventores, intrigas palacianas, revoluções, ditaduras, populações ou minorias desprezadas, vitórias dos mais fracos sobre os mais fortes (e vice-versa)… são inúmeras as vertentes de abordagem para esta não-ciência entre a tragédia e a farsa, principalmente na arte.

A literatura foi a que mais fez uso da História para criar situações e dar impulso a novas versões de acontecimentos eleitos como importantes. O cinema também foi pelo mesmo caminho, e desde era silenciosa adapta os mais diversos fatos históricos, muitas vezes de mãos dadas com a literatura. O presente é registrado ou revisto, retransformado ou modificado conforme as intenções dos autores e cineastas, seja na ficção, seja em um relato que se pretende verdadeiro. Mas se na arte o presente é o plano de fundo ideológico – lembrando que toda arte é um espelho do momento de sua produção -, é no passado que ela encontra seu lugar de ação favorito.

Vejamos o cinema contemporâneo. Quantos eventos históricos não vimos adaptados para a grande tela nos últimos anos? Quantas guerras e biografias não ganharam novas versões? O fascínio por revisões* é uma tendência desses primeiros anos do século XXI, e tem encontrado obras de grande apelo em seu caminho, seja com recriações quase exatas, seja com releituras bem diferentes, tal como nos casos de Histórias CruzadasDjango Livre e O Mordomo da Casa Branca.

Cada diretor e cada roteirista tem um modo de enxergar a História, de retrabalhar o passado. No caso de Lee Daniels e Danny Strong, em The Butler, temos um misto de condescendência, infantilização, crítica e seriedade ao olhar para a vida de Eugene Allen, o mordomo que serviu por três décadas na casa presidencial dos Estados Unidos, da administração de Eisenhower à Regan. Como revisão histórica, é evidente que há incongruências no filme, mas isso é a coisa mais comum em se tratando de um tema sensivelmente político-ideológico, posto que as pessoas possuem visões e interpretações diferentes umas das outras. Como entretenimento, há um forte apelo para o emocional, mas não vi toda essa entrega às lágrimas que tanto reclamam por aí. O Mordomo da Casa Branca não é um documentário, portanto deveria adotar uma atmosfera de identidade fictícia, e a que Lee Daniels adotou foi a do melodrama. Qual a dificuldade em perceber isso? É certo que ninguém é obrigado a gostar dessa visão ou abordagem, mas aí abrimos a porta para um outro lugar.

Com um elenco estelar e algumas pequenas participações, o filme traça duas linhas principais para o espectador. Uma delas é o lado familiar, de onde vem o apelo emocional do roteiro, as relações familiares, o sustentáculo massivo do filme, que não é nada ruim. O outro lado é o da história dos direitos civis nos Estados Unidos, a luta dos negros para conseguir igualdade jurídica no país, as mudanças políticas – muitas vezes adoçadas por uma capa de veludo posta em presidentes que na verdade eram racistas – mas mesmo assim, é possível ver os dois lados da moeda se alternando. É ingenuidade demais achar que a totalidade do público de O Mordomo da Casa Branca vai comprar o discurso da “História dos vencedores”, dos brancos salvando os pretos, da criminalização dos movimentos dos oprimidos e frieza jornalística na abordagem dos crimes dos brancos.

O ponto de vista para o trabalho com o passado aqui não é único, hora reifica a versão branca, hora enaltece a versão negra, seja através da violência, do discurso político ou da emoção. Algumas interpretações ajudam a criar essas aparências, mas estamos falando de um filme de ficção que nem uma adaptação real de uma biografia é. Nessa esteira, até a fotografia aconchegante e de cores quentes na casa do protagonista, a trilha sonora plena de felicidade e o clima geralmente festivo nas cenas com a família de Eugene possuem razão de ser.

O Mordomo da Casa Branca garante uma sessão de cinema que nos traz um bom número de discussões, lágrimas, raiva, verdades e mentiras históricas. Quanto mais arguto for e conhecimento tiver o espectador, menos engessado ele verá o filme, ultrapassando aquela linha das obviedades marcantes e reconhecendo pelo menos o que há de bom em toda a proposta da obra: as atuações tocantes, as fantásticas sequências com uso de montagem paralela, sempre opondo pai e filho, luxo e lixo, paz e violência; as mudanças ocorridas na sociedade ao longo dos tempos e um grande número de ironias e frases nas entrelinhas. Só assim será possível fazer a ponte para o presente e então perceber que Estados Unidos é esse que Lee Daniels está tentando nos mostrar ou que espelhou em seu filme. Que tendência temos como mais marcante? Quem tem voz e quem não tem? Quem são os Panteras Negras, os Black Powers, os Passageiros da Liberdade, Pacifistas, Gandhistas, Lutheristas e Malcolmistas num país de mordomos felizes em servir os que aparentemente estão fazendo alguma coisa por todos? Quem é esse Estados Unidos visto sob tal perspectiva histórica?

* Meu partner e co-editor aqui do Plano Crítico, Ritter Fan, escreveu um artigo incrível sobre o revisionismo histórico no cinema, se você se interessa pelo tema, indico fortemente a leitura. Embora o foco dele seja a análise de Django Livre, o conceito trabalhado no texto é amplamente aplicável: Django Livre e o filme “Histórico Revisionista”.

O Mordomo da Casa Branca (The Butler, EUA – 2013)
Direção: Lee Daniels
Roteiro: Danny Strong (baseado na reportagem de Wil Haygood)
Elenco: Alan Rickman, Cuba Gooding Jr., David Oyelowo, Forest Whitaker, John Cusack, Lenny Kravitz, Liev Schreiber, Melissa Leo, Oprah Winfrey, Robin Williams, Terrence Howard, Vanessa Redgrave
Duração: 132 min.

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