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Crítica | O Mundo Odeia-me

Corrida contra a morte.

por Fernando JG
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Dois amigos, Roy Collins (Edmond O’Brien) e Gilbert Bowen (Frank Lovejoy), estão na estrada quando um estranho lhes pede carona. Não demora muito para descobrirem que o caronista é Emmett Myers (William Talman), cuja identidade se apresenta como um facínora amplamente conhecido pelo Estado devido aos seus trabalhos como assassino impiedoso. Inicia-se, portanto, uma corrida contra a morte. Afinal, qual dos dois amigos será o primeiro sacrificado?

Neste filme B de baixo orçamento e produzido em cerca de dois meses por Ida Lupino e companhia, temos, diferente de seus outros longas, uma predominância de personagens masculinos. Não é curioso que para os seus grandes dramas a escolha de elenco principal seja feminina e neste noir, masculina? Não há aqui uma femme fatale, mas apenas três homens que compõem quase que o todo do drama. Certamente que tudo está direcionado pelo gênero cinematográfico e isso pauta exclusivamente a escolha de quem estará à frente das telas. Ainda que seja pouco relevante para o filme em si, dá uma boa discussão adjacente. Bom… vamos adiante. 

Se algo chama a atenção e se destaca ao longo de toda a rodagem é este enredo tensionado do princípio ao fim, garantindo uma espécie de frenesi em quem assiste. É como um elástico esticado até o seu limite. Para isso, a cineasta tem a plena consciência de que é preciso manter a unidade fílmica, isto é, seria muito mais complicado, do ponto de vista estrutural, fazer com que o filme ganhasse a tensão necessária a partir de um enredo fragmentado e dividido em diferentes espaços e tempos. O que ela faz? escolhe uma estrada como espaço fundamental para o desenvolvimento narrativo, estabelece um sequestro neste ambiente e os faz percorrer, durante os 70 minutos de película, um caminho cheio de incertezas, solidão e horror sob o prisma de um revólver que atua, para as personagens que são vítimas, como expositor de uma angústia limítrofe. Tudo o mais acontece nesses poucos minutos e neste espaço-tempo absolutamente limitado, embora envolto de uma paisagem vazia e infértil, o que encerra, no longa-metragem, inteireza, completude e unidade. Ida Lupino escolhe um enredo simplificado mas extremamente profícuo e inteligente. 

Essencialmente, só são necessários três personagens para que não desgrudemos mais os olhos da tela e fiquemos ansiosos para cada passo tomado pelo criminoso e seus reféns. Vamos acompanhando um impiedoso bandido e duas vítimas desoladas através dessa corrida contra a morte. Ao longo da película, a cineasta vai estudando seus personagens, mais especificamente o seu algoz. Me parece que é nele que as atenções estão voltadas desde o início e aos poucos somos expostos a um vilão que é, acima de tudo, um homem, que teve um passado, que teme, que sofre e então, embora essa roupagem maligna se mantenha, a cineasta o desveste e monta uma figura um pouco mais humana: afinal, pelo que se entende, ele só queria, ao fundo, ser levado até a fronteira, pegar a balsa e sumir. Moralmente, Emmett Myers é um sujeito ambíguo. Veja que temos de agradecer a William Talman, que faz Myers, porque ele é um baita de um vilão. Tudo acontece através dele. Caso sua atuação fosse um pouco menos rigorosa,  ou mesmo razoável, tudo estaria perdido. Ele é a grande estrela e um grande condutor de enredo. 

Tenho de ressaltar a claustrofobia disposta nas cenas em que estamos inseridos dentro do carro de viagem, o belíssimo chiaroscuro nas cenas noturnas, com um ensombramento impecável fazendo com que o filme se garanta também no aspecto estético e enfim não posso me esquecer da agoniante cena do tiro ao alvo, construída com cuidado para provocar um efeito angustiante no público. De modo sucessivo e com um ritmo de condução veloz, a cineasta joga com elementos primordiais do gênero por meio de um minimalismo dramático e narrativo, colocando seu filme numa posição de ser curto mas eficiente. Sendo assim, a estilística também opera de acordo com o desenvolvimento da intriga e tão logo que os personagens correm contra o tempo, o estilo também se faz rápido e imediato. 

Embora elogiável, tenho de alertar que num dado instante a película vai caindo no óbvio, sobretudo no terceiro ato e já prontamente sabemos o que ocorrerá. O plot e o desenlace não acompanha a força da intriga principal, de modo que as coisas se tornam previsíveis já no final do segundo ato e por mais que tente não consegue fazer com que as coisas não acabem assim, no esperado. O plot-twist poderia ser de fato uma reviravolta mas é apenas um desenrolar dramático sem tanta potência intempestiva. No mais, não concordamos todos que, pelo seu tipo, este é um filme que poderia ser explorado na perspectiva de um psicodrama sufocante? Me fica a impressão de que, embora a figura do algoz seja indiscutivelmente bem explorada, falta rigor na construção da persona das vítimas.  

Sem desmerecer absolutamente O Mundo Odeia-me de Ida Lupino, que por muito tempo foi considerado o “único noir legítimo dirigido por uma mulher”, vemos que ele apenas evidencia o talento da cineasta em lidar com sua versatilidade criativa, trabalhando diferentes gêneros e temas em suas produções. Poderia ir além, é claro, já que aposta num enredo indoor, espécie capaz de provocar sentimentos kafkianos no público, mas ainda assim satisfaz plenamente com seu minimalismo espaço-temporal e um reduzido trabalho de personagens. Enfim, um tema clássico para o gênero escolhido e um proto-suspense certamente. Fica a deixa: cuidado ao oferecer caronas! 

O Mundo Odeia-me (The Hitch-Hiker, EUA, 1953)
Direção: Ida Lupino
Roteiro: Ida Lupino, Collier Young
Elenco: Edmond O’Brien, Frank Lovejoy, William Talman, José Torvay, Wendell Niles, Jean Del Val, Clark Howat, Natividad Vacío, Rodney Bell
Duração: 71 min. 

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