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Crítica | O Nariz, de Nikolai Gógol

por Luiz Santiago
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 O Nariz, do escritor russo Nikolai Gógol, é um conto satírico com pitadas de fantasia (alguns articulistas até o colocam como uma produção proto-surrealista) publicado pela primeira vez em 1836, na revista literária, política e social O Contemporâneo (em cujas páginas podia-se encontrar poesia, prosa, crítica, e material histórico e etnográfico, além de outros tipos de publicações) criada e editada por Aleksandr Púchkin. Conta-se de que a ideia para o enredo dessa história veio a Gógol a partir da fixação que ele tinha com o tamanho de seu próprio nariz, e se estabelece como uma crítica de caráter absurdo e até grotesco a costumes sociais como a higiene, a relação do barbeiro com seus clientes e a estranha forma de classificação das patentes na Rússia daquela época.

A história do conto se passa entre o dia 25 de março (a primeira parte) e 7 de abril (a terceira parte). Primeiro conhecemos um evento com o barbeiro Ivan Iákovlevitch, que certa manhã encontra um nariz em um pão assado em casa. Depois voltamos os nossos olhos para o desesperado assessor de colegiatura Kovalióv, que gostava de ser chamado de Major. Ele acorda sem o nariz e, além do desespero de lidar com esse fato inexplicável, presencia esse seu órgão “desaparecido” andando pelas ruas de São Petersburgo vestindo um uniforme de Conselheiro de Estado, uma patente superior à do próprio Kovalióv. Na terceira parte, o autor brinca com esses dois eventos, os boatos em torno dele e a própria crítica que alguém possa fazer a uma história tão inverossímil.

A estrutura do conto mescla uma abordagem de narrativa simples com incursões metalinguísticas, com Gógol direcionando-se ao leitor em momentos onde precisa dispersar a atenção, encobrindo certo ponto da história com uma névoa e partindo daí para outro bloco, sem voltar a preocupar-se com o que de fato aconteceu ali. A técnica é tão bem empregada que o leitor não sente falta de uma real explicação, pois o tom do enredo já deixa claro que não estamos em uma aventura onde o realismo tem a palavra final. Além disso, a divisão interna da história contribui para essa percepção, e tratamos cada bloco como um evento isolado — mas idealmente costurado — do anterior.

Os símbolos aqui são muitos. A opção mais óbvia é atentarmos para a questão do olfato, mas ainda nessa linha de análise, pensar o que isso representa para o personagem. A possibilidade de cheirar algo e saber se está limpo ou sujo (e vejam que isso é confirmado pelo próprio conto, quando se fala do mau cheiro das mãos do barbeiro) serve também como uma espécie de divisão de classes e patentes. O nariz, nessa leitura, é tanto um órgão de embelezamento (o desespero de Kovalióv, ao perdê-lo, é imenso) quanto de distinção social: enquanto uma pessoa de alta patente perde o nariz e entra em parafuso, um humilde barbeiro vê o nariz como um estorvo, e procura livrar-se dele, embrulhando-o num trapo e jogando-o no rio.

Considerando o elemento romântico (o major Kovalióv vive flertando com tudo quanto é mulher), o nariz também pode ser o item de um complexo de castração. Vejam como Kovalióv simplesmente se vê sem vontade, com medo de até mesmo encontrar-se com alguma mulher bonita, uma vez que ele não tem o seu nariz e, por isso mesmo, “não poderá apresentar-se para elas” — a dubiedade entre a estética da face e o pênis, ou a “falta” dele, é um brinde — posição que vemos o Major reconsiderar após acordar com o nariz novamente no lugar e sair exibindo o órgão por todos os lugares, confiante de si, flertando e exibindo-se socialmente, pleiteando inclusive um novo cargo. Para quem lê em inglês, sugiro um fantástico artigo de literatura comparada escrito por Lauren Lydic intitulado “Noseological” Parody, Gender Discourse, and Yugoslav Feminisms: Following Gogol’’s “Nose” to Dubravka Ugrešic´’s “Hot Dog on a Warm Bun”. É um artigo bem fácil de se achar na internet e explora de modo bem interessante e divertido as possíveis leituras de cunho sexual contidas na obra.

Um conto cômico, de cunho absurdo e fantástico sobre um nariz perdido, suas aventuras e as desventuras de seu dono, O Nariz chegou inclusive à ópera, numa composição de Dmitri Shostakovich, que estreou 18 de janeiro de 1930, tendo sido escrita alguns anos antes. Uma pequena história sobre costumes, identidade e busca… após uma fuga impossível.

O Nariz (Нос) – Rússia, 1836
Autor: Nikolai Gógol
Publicação original: Современник (Sovremennik / O Contemporâneo)
Edição lida para esta crítica: Contos Fantásticos do Século XIX (Italo Calvino)
Tradução: Aríete Cavaliere (tradução publicada originalmente em O Nariz e a Vingança das Máscaras, coleção Criação & Crítica, Edusp, São Paulo, 1990).
Páginas: 35

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