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Crítica | O Nome da Rosa, de Umberto Eco

Romance detetivesco em uma abadia do século XIV.

por Kevin Rick
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O Nome da Rosa é um livro complexo. Essa é facilmente a maneira mais objetiva de caracterizar a primeira obra literária de ficção do escritor Umberto Eco. O autor italiano, já falecido, é um dos artistas e intelectuais mais prestigiados na cultura contemporânea, tendo sido reconhecido como o mais importante representante acadêmico da semiótica, que, de forma resumida, é o ramo de estudo sobre signos de linguagem e significados de comunicação. Além disso, Eco era um historiador e filósofo de grande renome, especialmente na cultura italiana. Assim, é mais do que compreensível que seu primeiro romance caminhe em uma linha tênue de ficção e estudo teórico.

Falando da premissa, o escritor traduziu um livro que lhe foi dado em 1968 por alguém chamado Abbé Vallet, que por sua vez era uma tradução francesa de um texto em latim escrito por um monge idoso, Adso de Melk, na Itália do século XIV. O texto original de Adso circula o mote da obra, uma história de investigação em torno de misteriosas mortes em uma abadia não nomeada, no ano de 1327, que o próprio Adso testemunhou em primeira mão em sua juventude enquanto seguia seu mestre, o frade franciscano William de Baskerville – o sobrenome do frei foi escolhido por Eco em homenagem/referência clara a O Cão dos Baskervilles, de Arthur Conan Doyle. Nesse sentido, é necessário pontuar que os relatos da obra são majoritariamente fictícios, mas como professor de semiótica e historiador, Eco dilui eventos reais do período e utiliza-se de metanarrativa para discutir temas intrincados do dogmatismo e do clero.

A alusão a Sherlock Holmes é proposital para o estilo de narrativa detetivesco do livro em torno das estranhas mortes na abadia. Mas, diferente do que a (excelente) adaptação do livro demonstra, a investigação é apenas um artifício narrativo, quase uma desculpa, para Eco trabalhar debates teológicos e filosóficos de forma crítica e irônica contra o pensamento sectário. O autor tem uma abordagem metódica de questionamento das verdades da Igreja, utilizando a figura sherlockiana de William como representação da racionalidade, debate, tolerância e, em suma, da Ciência, versus a capela doutrinária hermética e intransigente do catolicismo. O background histórico para essa discussão é extremamente rico, abarcando um conflito doutrinário em torno da pobreza apostólica, que foi particularmente divisiva no século XIV e que exigia que os cristãos vivessem sem possuir qualquer propriedade – vertente defendida pelos franciscanos, do qual William faz parte na história. O Papa João XXII fez todas as tentativas para bloquear a progressão desse pensamento religioso, com medo de que isso pudesse ameaçar a riqueza e propriedade de terras da Igreja, além do controle sobre os camponeses. Os franciscanos espirituais lutavam por esse pensamento mais próximo de igualdade e de abnegação, sendo apoiados por Luís IV, então rei dos romanos e da Itália, e liderados por Michele de Cesena – personagem ativo no livro.

A ficção histórica de Eco se passa nesse período, em algum ponto da jornada de Michele pela Itália, onde o líder franciscano se encontraria com homens do papa para resolver suas diferenças de forma pacífica e privada. William serviria como mediador por conta do seu intelecto e passado como membro da Inquisição. No entanto, ao chegar na abadia, junto de Adso, o frade descobre que um monge faleceu após cair de um edifício – há vários ótimos debates sobre suicídio nessa parte inicial, nas primeiras inserções provocativas de Eco contra a hipocrisia da Igreja, que prefere esconder ou negar o possível evento do que relevar a verdade. Porém, mais mortes estranhas acontecem, com o abade deixando o mistério nas mãos de William antes que a delegação do papa chegue.

Este pano de fundo histórico que citei, no entanto, não é explicado por Eco. Ou melhor dizendo, a narrativa vai aos pouquinhos diluindo as questões históricas, mas o autor se distancia o máximo possível de didatismo. O leitor é jogado no meio desses conflitos sem qualquer aviso prévio, algo que particularmente adorei e que aguçou minha curiosidade, mas que deixa a parte inicial do livro complicada de ler. Se você não estiver realmente investido na leitura, confesso que é bem possível que O Nome da Rosa provavelmente não seja uma experiência prazerosa, pois exige do leitor o máximo de atenção e paciência. A prosa de Eco também contém inúmeras passagens em latim (pelo menos da minha versão lida), mantidas intactas do material original, o que, novamente, adiciona outra camada de complexidade à leitura, além de que muitos desses trechos interrompem e “atrapalham” a fluidez de diálogos e do entendimento da narrativa. Porém, é mais um aspecto que vejo de maneira positiva, pois traz uma ambiguidade linguística que proporciona imersão e, se possível, pesquisa – é um estudo maravilhoso se acompanhado de consultas extras.

Mas se a narrativa não é exatamente didática, a estrutura do enredo é bem delineada para o leitor. Isso se deve ao manuscrito de Adso, que está dividido em sete dias e cada um dos dias em períodos correspondentes às horas litúrgicas. Há uma segmentação nítida do estilo narrativo em cada período, com os momentos matinais focando em diversos debates entre William e uma classe gigantesca de figuras diversas da Igreja, enquanto as partes próximas do recolhimento dos monges ocorrem mais em torno da investigação. Obviamente que não são sequências exatamente iguais, mas há bastante similaridade ao tipo de narrativa sendo contada ao longo do dia que transforma a leitura em uma espécie de ritual. Pelo menos comigo, houve uma certa ritualização do que esperar dependendo dos horários do dia, o que foi estranhamente prazeroso dado o rico contexto histórico da obra. “Quando o dia começava”, eu mal podia esperar pelas discussões calorosas e interpretações bíblicas, enquanto o período noturno guardava os segredos sombrios da abadia sendo descobertos pela dupla principal através de labirintos secretos.

Eco tem um controle monstruoso sobre a pluralidade narrativa e temática do livro. Os debates teológicos destacam seitas religiosas, análises bíblicas, reflexão política e dogmática, estudo medieval e até paródia do catolicismo, inclusive com um dos temas principais da obra sendo a proibição, ou pelo menos visão nociva, do riso. Existe até mesmo um capítulo metafísico e onírico de uma visão de Adso que é um mar de metáforas para ler e reler dezenas de vezes. A narrativa vai de Aristóteles até os terríveis dolcinianos, discutindo machismo, pedofilia, intolerância religiosa, acúmulo de poder, relações governamentais, existencialismo, moralidade, etc. As discussões ganham um caráter teatral nas descrições de Adso, com o texto criando grandes cenários para as altercações longas, densas, elucidativas e extremamente divertidas. Mas a tendência de argumentação é sempre bem diluída no mistério da investigação, com ótimo uso de pistas, suspeitos e a própria Literatura como meios de exemplificar as hipocrisias religiosas descritas no debate. Sem falar que é genuinamente intrigante o desenvolvimento investigativo e dedutivo do cínico William em meio a este lamaçal de tradição mesquinha e inflexível, já que o frade vai descortinando os segredinhos horrorosos da Igreja.

Em determinado momento de O Nome da Rosa, um personagem fala de como as maiores infâmias dentro do pensamento religioso estão acontecendo em um só local. E o intuito da obra é justamente esse, utilizando a abadia sem nome como um microcosmo de toda uma história suja de sangue e crueldade da Igreja. É um livro complexo pela prosa cheia de trechos em latim e pela narrativa densa em torno dos vários debates milenares de ciência vs religião, e de crenças vs diferentes crenças. Mas é justamente essa complexidade que torna o livro tão rico, reflexivo e especial. Eco, usando do material original intrigante, mistura ficção e semiótica para oferecer uma das leituras mais interpretativas e reveladoras da literatura.

O Nome da Rosa (Il Nome Della Rosa) — Itália, 1980
Autor: Umberto Eco
Editora original: Bompiani
Edição lida para esta crítica: Editora Record (2019)
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
592 páginas

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