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Crítica | O Oficial e o Espião

por Michel Gutwilen
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Olhar para o passado é uma forma de entender o presente. Se o título internacional do novo filme de Roman Polanski, O Oficial e o Espião, remete apenas a um thriller genérico de espionagem (algo que o filme também não nega), a sua essência se encontra na versão original francesa: J’Accuse. Eu acuso. A poderosa afirmação não só remete ao artigo original escrito por Émile Zola para denunciar a injustiça histórica e antissemita no Caso Dreyfus, como também carrega todo o peso inerente da palavra. Ao ser acusado, tanto na França da Terceira República quanto no mundo cibernético atual, basicamente, você já está condenado. 

Se você está lendo este texto provavelmente já sabe que Polanski é um condenado à prisão por estupro de menor e passa o terço final de sua vida trabalhando com cinema em países nos quais ele não pode ser extraditado. Longe de defender ou ter piedade de um ato monstruoso, mas tento entender a intenção de Roman com O Oficial e o Espião. Ironicamente, a história trata do militar Dreyfus, um judeu injustamente acusado de traição e espionagem pelo Exército Francês, sentenciado a 10 anos de reclusão em uma ilha remota, até que o oficial Picquart decide investigar o caso após encontrar algumas contradições nele.

Hoje, a história já sabe que Dreyfus é inocente e que Polanski é um condenado. Então por que a existência desta produção? Por mais que a camada superficial do roteiro faça do filme uma constante busca pela justiça diante do antissemitismo, seu cerne parece estar em uma outra questão. A honra e a morte social do homem. Em um certo momento do filme, Dreyfus tem a chance de se livrar da pena, contanto que aceite as acusações. Não é isso que interessa a ele. Afinal, ainda que livre, o oficial já sabe que está condenado socialmente. Uma cena mostra ele andando pelas ruas, após sua soltura, até que um homem lhe reconhece e parte para o ataque. De mesmo modo, o ex-prisioneiro clama para que o seu tempo de prisão seja considerado na hora de subir a patente. Assim, o que resta é a sua própria honra e o reconhecimento dentro do trabalho, a única coisa que lhe restou.

Claro, não há como desconsiderar o peso que o antissemitismo carrega em O Oficial e o Espião e que este sempre foi um tema presente na cinematografia do diretor (já podendo ser encontrado no seu magnífico curta Lamp). O roteiro de Polanski e de Harris até não se envergonha em resumir o Exército Francês a uma casta de idosos bigodudos preconceituosos, ao ponto que eu não conseguia mais diferenciar quem era quem no meio de tantos personagens secundários dentro daquela hierarquia militar. Enquanto individualiza os injustiçados de sua história, o mal funciona mais como uma estrutura enraizada.

Aliás, a própria escolha de protagonizar Picquart e tornar Dreyfus um mero secundário, funciona de modo a escancarar essa aniquilação social do personagem até mesmo dentro da própria narrativa. Não há dúvidas de que Polanski poderia fazer de O Oficial e o Espião um excelente drama psicológico de um homem isolado em uma ilha, mas o que importa é, justamente, a maneira como sua condenação funciona dentro de um contexto social. Logo, é justamente através de sua não-presença que Dreyfus ganha força. Ele não está presente, mas a constante menção de seu nome torna sua presença viva. Analogamente, isso é algo que pode ser trazido para os dias de hoje. Quanto mais debatemos sobre os crimes do diretor, mais ajudamos a disseminar seu nome.

Precisamente por reconhecer a força das palavras, boa parte do longa se arrasta por verborragias, nas quais Polanski, como diretor, não faz nada mais do que deixar com que o peso delas seja sentido, o que, inevitavelmente, também se torna cansativo. Curioso, no entanto, como esta decupagem das cenas ajuda a construir todo um tom de distanciamento e afastamento dramático, combinando com a montagem abrupta e as elipses temporais, que anulam qualquer grau de envolvimento tanto dos personagens entre si, quanto nosso. Tudo isso parece estar em sintonia com a própria trivialidade que Dreyfus e Picquart enxergam o caso, em um senso de honra e justiça, até como se fosse uma obrigação, e nada mais do que isso.

Por fim, é possível possível enxergar o novo longa de Polanski apenas como um filme de época visualmente competente, e que trata de maneira eficiente um dos maiores casos da história francesa. Todavia, não deixa de ser muito mais interessante pensar na maneira como o diretor se enxerga, equivocadamente, na figura do inocente Dreyfus e reflete sobre os perigos de uma acusação se tornar uma sentença, causando a destruição da reputação de um homem.  Assim, só consigo concluir que Polanski, a esta altura, sabe que o veredito do povo já foi dado há muito tempo. No entanto, em sua cabeça, ao que parece, ele ao menos deseja ser reconhecido pelos feitos na “Instituição” em que ele tanto serviu — O Cinema. A maior dignidade que ele ainda pode guardar.

O Oficial e o Espião (J’Accuse)  – França, Itália, 2019
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Roman Polanski, Robert Harris
Elenco: Louis Garrel, Jean Dujardin, Emmanuelle Seigner, Grégory Gadebois, Vincent Pérez, Melvil Poupaud, André Marcon, Mathieu Amalric, Vincent Grass
Duração: 132 min

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