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Crítica | O Pai Goriot, de Honoré de Balzac

por Guilherme Almeida
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A Comédia Humana é o maior projeto da história da literatura. Na concepção de Honoré de Balzac (1799-1850), o conjunto deveria reunir nada menos que 137 obras e centenas de personagens, mas uma morte prematura interrompeu os planos com “apenas” noventa delas escritas. Eis um grande afresco da vida francesa no século XIX, recheado de figuras, ambientes, hábitos, costumes e falas. Tão pulsante é a prospecção da vida social, principalmente parisiense, que Engels acreditava serem os romances balzaquianos mais relevantes que infinitos tratados históricos, e Lukács via no autor um realista de capacidade incomparável e olho perspicaz, que imprimiu no panorama de época as forças econômicas e de classe então em curso. O feito, portanto, merece o título que remete à grandeza de Dante, indo fundo na experiência da modernidade, revelando muitos de seus segredos.

Nesse contexto, O Pai Goriot (1935) pode ser visto retrospectivamente como um dos alicerces dessa maravilhosa arquitetura ficcional. A partir daqui, são forjados personagens fundamentais que reaparecerão em outros romances, e Balzac passa a formular mais organicamente a ideia de interconectar várias obras num mesmo universo. A trama destaca Eugène de Rastignac, um jovem provinciano que estuda Direito em Paris e quer subir na escala social. Seu contato com esse admirável mundo novo causa surpresas e angústias, pois a grande cidade proporciona tanto o gozo do luxo quanto a venalidade das almas reificadas.

O nó das relações se passa na pensão da Madame Vauquer, uma megera fofoqueira e cobiçosa. Dentro desse mundo em miniatura, acompanhamos personagens singulares, cada qual cuidadosamente pintado em tintas próprias. O velho Poiret sempre repetindo o que dizem os hóspedes; Vautrin e sua fala afiada, cínica e niilista, fazendo jus às melhores criações de Oscar Wilde; a jovem Victorine Taillefer, com personalidade ingênua; e sobretudo o personagem-título Goriot, figura misteriosa que pouco a pouco se revela um pai apaixonado que abriu mão de toda sua riqueza para atender aos caprichos de suas filhas ingratas, numa espécie de recriação do Rei Lear shakespeariano.

Balzac não economiza ao retratar a precariedade da mansarda, descrevendo em detalhes e de modo realista os arredores obscuros, os pobres-diabos que habitam as sombras de uma Paris ainda não reformada pelo Barão de Haussmann. Rastignac concentra toda sua sanha arrivista para fugir desse destino, aproveitando-se do parentesco com a Viscondessa de Beauséant e travando relações com a alta sociedade, até apaixonar-se por Delphine de Nucingen, esposa de um banqueiro. O jovem estudante passa simultaneamente por uma trama de educação e de desilusão, na medida em que aprende os modos da elite sem deixar de se incomodar com todo aquele esquema social de mentira e interesse. Se na sua terra natal reinava o idílio do amor familiar, na França da Restauração o dinheiro é a regra do jogo: a prosa do mercado engole a poesia do coração.

Em paralelo, Goriot sofre com a indiferença das filhas, uma das quais, descobre-se, é a própria Delphine. Sempre absorto, como se alheio ao dia a dia da pensão burguesa, o pai abandonado é  alvo de chacota. Muitos especulam sua origem, o destino de seu dinheiro, os antecedentes de sua vida. Chocam-se a pobreza do velhaco e a riqueza das herdeiras por quem ele renunciou tudo; a maravilha dos bailes unida às benesses da corte fê-las envergonharem-se do comerciante rústico, preterindo-lhe em favor da conveniência econômica.

Muito claramente, o pano de fundo filosófico do romance é Jean-Jacques Rousseau, suas críticas à propriedade privada e a noção de que o pacto social corrompe os homens. Não à toa, Vautrin se mostra um criminoso que se justifica ideologicamente, fazendo da rebelião não um mero gesto de banditismo, mas uma contraposição intelectual ao momento histórico. Se nesse caso nota-se a semente dos personagens-ideia que vão povoar a obra de Dostoiévski, a influência não para por aí, uma vez que a situação de Rastignac parece conter em germe os mesmos dilemas de Raskólnikov.

Rastignac não chega à decisão radical do protagonista de Crime e Castigo, porém tampouco pode-se dizer que nele o idealismo superou o princípio de realidade. Para vencer na vida, ele tem que abandonar seus valores mais caros, de modo que o sucesso guarda seu momento da amargura. Após a morte de Goriot, em relação à qual as filhas pouco se envolvem, o estudante olha Paris de cima para baixo, como se controlasse seus meandros, ao mesmo tempo que o cemitério onde se encontra lembra-lhe que a pândega das elites faz cadáveres. Há em Balzac uma conexão entre meio e personalidade, mas ela não é mecânica ao modo de Zola, preservando no interior dos indivíduos a angústia dos dilemas.

O apuro estilístico cria diálogos deliciosos, nos quais cada personagem fala a seu modo, segundo seus próprios cacoetes. Alguns jogos de linguagem comuns na época são registrados, e Balzac capta as gírias dos jovens e até dos criminosos. Esse cuidado com a minúcia, somado ao retrato vivo da corte, dos bailes, da pobreza, das vestimentas e dos hábitos gerais constroem um mundo perfeitamente convincente, cuja pulsação supera com folga as anodinias de um realismo dogmático e de escola.

Ainda hoje, Balzac continua a encantar leitores com sua obra fascinante. Ele dizia ter um mundo completo na cabeça, o qual foi desenvolvido progressivamente segundo o ritmo de gestação da Comédia Humana. O retorno dos personagens é sua técnica literária mais famosa, tendo influenciado Machado de Assis, o roman-fleuve francês, os experimentos de Michel Butor e assim por diante. Você acredita, caro leitor, que mesmo os universos quadrinesco e cinematográfico da Marvel e da DC devem algo ao pai do realismo?

Le Père Goriot – França, 1835
A Comédia Humana #22: Cenas da Vida Privada (Estudos de Costumes)
Autor: Honoré de Balzac
Tradução: Rosa Freire d’Aguiar
Editora no Brasil: Companhia das Letras
Páginas: 312

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