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Crítica | O Pão Nosso de Cada Dia (1930)

por Fernando JG
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Dar nota a um filme não é tão importante assim, do ponto de vista analítico de uma obra. Analisar uma obra é perceber suas nuances, seus artifícios de composição, sua construção contextual, e não enumerar, de 0 a 10, o quanto ela vale.  É mais um modo de cumprir com as categorias de “gostei” e “não gostei”. Uma análise fílmica não se encerra em um veredito numerológico, e seria reduzir o cinema a um método de produção que eu não concordo. Oferecer uma nota que corresponde a um “muito bom” é só uma forma de dizer que eu gostei. Desse modo, a nota que dou para O Pão Nosso de Cada Dia está amparada em uma avaliação comparativa entre essa obra e outras do diretor. Assim, não pude deixar de olhar para O Pão Nosso de Cada Dia (1930) em comparação à Aurora (1927), a qual considero a obra-prima de F.W. Murnau – da mesma maneira que considero Fausto (1926) a grande obra do expressionismo murnauniano, longa este em que se utiliza com força de um embate contrastivo entre luz e sombra. O mestre do expressionismo gótico alemão, e do soturnismo, jamais seria redutível a uma avaliação tão simples. No entanto, em comparação com suas outras obras, sobretudo quando escolhe falar de amor, esta não ocupa o primeiro lugar – o que não deixa de ser uma rodagem belíssima e um grande filme dos gêneros de drama e romance. 

E, então, Murnau, logo após a produção do Fausto, vai para Hollywood trabalhar na Fox. Ele abandona a experimentação estética, temática e demonstra, através do cinema com alcance mundial, o norte-americano, seu talento em produções menos obscuras. Aurora foi a sua primeira rodagem à hollywoodiana, e, em 1930, no meio da crise gerada pelo crack da bolsa de Nova York, ele vem de novo a público com City Girl (O Pão Nosso de Cada Dia, 1930) – filme, inclusive, rodeado por polêmicas na produção. Há uma versão falada em algum lugar do mundo, mas não está acessível para nós, já que a tradução do filme mudo para o modo falado se deu através de uma confusão entre Murnau e os diretores do estúdio, que queriam que o longa fosse falado, vontade oposta aos desejos de Murnau em relação ao seu filme. Fato é que existem duas versões do longa. 

Friedrich Wilhelm Murnau (Nosferatu, A Última Gargalhada) contextualiza seu filme no meio da crise de 1929, articulando o drama e o romance ao redor dos problemas financeiros daquela década. Assim, recebemos Lem Tustine (Charles Farrell), um filho de produtores de trigo que, pela primeira vez, está indo à cidade negociar a venda da safra em nome de sua família. O preço do trigo está em queda, devido ao crack, e tempos sombrios se aproximam. Chegando em Chicago, Lem conhece Kate (Mary Duncan), uma garçonete, e se apaixona por ela, e ela por ele reciprocamente. É muito bonita a construção cênica do encontro e visivelmente ela se apaixona por cada detalhe, na medida em que as cenas correm. Em geral, a crítica não percebe que Kate se apaixona pela delicadeza do rapaz: ele reza antes de comer; reúne os pratos e os talheres pós refeição; a relação respeitosa que ele tem com a mãe etc. Kate percebe esses detalhes e se prende a eles.

Lem é um moço do campo, Kate, da cidade. Ainda que a relação de ambos seja carregada de uma menor intensidade destrutiva em relação à Aurora, a carga dramática se estabelece, primeiro, pelo conflito financeiro universal e as incertezas acerca da venda do trigo durante a maior crise do capitalismo; segundo, pelo conflito entre diferentes classes sociais. O pai de Lem rejeita a moça e a pensa como interesseira, abrindo um drama dentro do drama. O rapaz tem de lidar com a frustração dos pais em relação à sua performance como vendedor, e também com a intolerância do pai em não aceitar o namoro. 

Diferente de muitos diretores, Murnau decide não trabalhar com a coletividade que propunha a economia keynesiana, que influenciaria temáticas coletivistas no cinema, como King Vidor em O Pão Nosso (1934). Um dos grandes trunfos da estética do filme é ver Murnau resgatando o expressionismo e introduzindo uma leve dose da técnica em seu filme, como na cena do quadro dos pássaros, ou no leve sombreamento e oposição de cores que faz ao fim do filme, quando Lem supostamente leva um tiro, trazendo o sombrio típico do diretor. 

A trilha sonora é excelente, e ela mostra força, sobretudo, quando o casal de pombinhos chegam à fazenda. A presença de um lirismo bucólico, somado ao cenário campesino, introjeta uma sensação única de plenitude e poesia à cena, que é carregada de um teor divino com um plano-aberto realçando a plantação de trigo, que parece reluzir ouro sobre o amor dos personagens. Todo esse cenário que reflete o belo faz a passagem para o infausto, para a infelicidade. A figura rude do pai está muito bem representada por David Torrence, que consegue ser insensível e bruto na medida certa. É através dele, do pai de Lem, que a presença desse femino no campo é hostilizada. Com uma grosseria desconcertante, ele transmite uma aspereza crua, viril. É também através da recepção dele que ocorre a passagem da plenitude para o desconforto, logo após a cena poética da chegada. 

A grande frustração de Kate foi idealizar demais um cenário que, quando encontrou com o real, veio abaixo, um lirismo campesino que foi diretamente de encontro com a realidade mais dura e cruel. O campo não foi um lugar de acolhimento e de amor. Tanto é que ela pergunta: “Aqui, no campo, vocês não se apaixonam? e diz logo em seguida: “Eu pensava que o campo era puro, que os homens daqui eram decentes!”, já que tudo que ela presenciou até o momento foi a manifestação de pessoas rudes em todas as esferas, desde o sogro até os trabalhadores locais. 

O Pão Nosso de Cada Dia é uma beleza de filme, mas esbarra no seu anterior, o que não lhe tira, de modo algum, o mérito. Apesar de achar que o argumento procure um fundo moralista em sua trama, e o final representa bem isso, é um longa importante na filmografia de Murnau. City Girl traz um enredo completo em si, discutindo questões pertinentes, como a exploração dos empregados, a misoginia, as provas de amor, as relações entre campo e cidade etc, construindo uma poesia visual que enche os olhos de quem assiste. 

O Pão Nosso de Cada Dia (City Girl, EUA, 1930)
Direção: F. W. Murnau
Roteiro: Berthold Viertel, Marion Orth
Elenco: Charles Farrell, Mary Duncan, David Torrence, Edith Yorke, Anne Shirley,Tom McGuire,Roscoe Ates, Ivan Linow, Arnold Lucy, Helen Lynch, Jack Pennick, Guinn Williams, Mark Hamilton
Duração: 77 min.

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