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Crítica | O Papiro de César (Asterix)

por Ritter Fan
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Achei que nunca mais teria o prazer dessa sensação, mas O Papiro de César, publicado 36 anos depois de Asterix entre os Belgas, último álbum de história única das aventuras de Asterix escrito por René Goscinny, falecido dois anos antes, me fez sentir estar lendo uma história escrita pelo grande mestre. Jean-Yves Ferri conseguiu, em apenas seu segundo mergulho neste universo – o primeiro foi em Asterix entre os Pictos – trazer de volta a “voz” clássica dos irredutíveis gauleses, algo que Albert Uderzo jamais realmente conseguira em suas oito tentativas solo. Não é ainda uma obra-prima, vejam bem, mas é sem dúvida alguma o melhor álbum da série desde 1979.

O segredo foi parar de inventar moda e abordar assunto histórico muito próximo aos personagens que, curiosamente, não havia sido ainda tentado. Júlio César legou sua vida à História não somente por seus feitos, mas também pelos relatos de suas vitórias na forma de “comentários”, sendo o mais famoso deles, provavelmente, aqueles referentes à conquista da Gália, Commentarii de Bello Gallico. Usado como forma de autopromoção e sendo o exemplo máximo do adágio que afirma que a história é contada pelos vencedores, o livro do então ainda “apenas” Cônsul Romano, parte de um triunvirato, destaca suas estratégias triunfais e a maneira como conseguiu subjugar seus inimigos em relatos escritos durante a campanha da Gália que, naturalmente, deixa de fora todos os aspectos negativos de seus anos fora de Roma.

É justamente a partir daí que Ferri constrói sua inteligente narrativa. Logo no preâmbulo, vemos César recebendo elogios do publicitário Promocionus sobre seu manuscrito que antevê enorme sucesso. No entanto, ele nota um problema, mais precisamente o capítulo XXIV, batizado de “Derrotas Sofridas Diante dos Irredutíveis Gauleses da Armórica”, e sugere simplesmente eliminá-lo, proposta que César relutantemente acata. No entanto, o papiro contendo o capítulo é furtado por um dos escribas mudos númidas responsáveis por sua reprodução e acaba caindo nas mãos do gaulês Superpolemix, que, claro, foge para a aldeia na Armórica reduto dos gauleses invencíveis.

Quando a ação finalmente chega por lá, os aldões estão às voltas com o horóscopo de cada um lido por um dos habitantes em jornal recebido de Lutécia, com Obelix sofrendo por não poder mais “entrar em conflitos” e tendo de “reduzir sua dieta de javalis”. Esse subtexto permanece aceso por todo o tempo ao longo da narrativa e sublinha comentário de Panoramix sobre as pessoas acreditarem em tudo o que está escrito que, claro, é o tema principal do álbum. Com Superpolemix chegando na aldeia e revelando o que aconteceu, o druida, Asterix e Obelix seguem até a Floresta dos Carnutes para que Arqueopterix, guardião secreto dos saberes dos gauleses com base em conhecimento passado oralmente, memorize o papiro. Perseguidos pela força censora romana a mando de Promocionus, nossos heróis, então, precisam enfrentar diversos desafios, deixando, por conseguinte, a aldeia desprotegida e em completa confusão em razão do já mencionado horóscopo.

O que Ferri consegue fazer em O Papiro de César é criar uma história com ótima impressão de unicidade, que funciona bem em todas as suas pontas, reúne assuntos históricos com questões modernas (como o escândalo Wikileaks, claro) e que não perde a essência da criação de Goscinny e Uderzo em momento algum, sem deixar de abrir espaço para as marcas registradas da série, como os piratas, convidados especiais e outros elementos, inclusive um final absolutamente genial que chega até a tempo presente. Além disso, há ritmo narrativo constante, sem parecer, como era comum quando Uderzo escrevia os álbuns, que há história de menos para páginas de mais. Tudo parece consideravelmente em seu lugar, mesmo que por vezes a questão do horóscopo afetando Obelix e os demais da aldeia parece um pouquinho exagerada.

Por sua vez, a arte de Didier Conrad não deixa absolutamente nada a dever a de Uderzo. Diria até que, por vezes, o artista consegue imprimir seu próprio estilo de distribuição de quadros por página e inserir ainda mais detalhes em sua arte do que o mestre anterior conseguia fazer. Talvez por culpa de Ferri, que usa muita gritaria neste álbum, Conrad acabe deixando os textos ocuparem muito espaço a cada página, mas não é algo constante ou que traga problemas para a leitura.

O Papiro de César é uma bela surpresa. Um álbum que é tão bom e lembra tão bem o estilo Goscinny de escrever que chegou até mesmo a emocionar este leitor de longa data que há décadas não se deparava com uma aventura de Asterix e Obelix desse naipe. Que a dupla Ferri-Conrad continue fértil assim!

O Papiro de César (Le Papyrus de César, França – 2015)
Roteiro: Jean-Yves Ferri (baseado em criação de René Goscinny e Albert Uderzo)
Arte: Didier Conrad
Editora original: Les Éditions Albert René
Editora no Brasil: Editora Record
Páginas: 48

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