Home LiteraturaConto Crítica | O Pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião

Crítica | O Pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião

A condição humana refletida pelo viés do realismo fantástico.

por Leonardo Campos
1,9K views

Publicado em 1974 e responsável por colocar o escritor e jornalista Murilo Rubião no mapeamento das referências literárias brasileiras do século XX, O Pirotécnico Zacarias é um conto estruturado por elementos do realismo fantástico, com uma história ainda muito atual sobre o absurdo da condição humana. Em sua abertura, o narrador cita um excerto do livro de Jó e explica ao leitor a situação na qual se encontra. Ele é uma figura morta-viva, a perambular por dois mundos diferentes, em busca de compreensão para a sua própria existência, ressignificada depois da trágica morte envolvendo um atropelamento, acontecimento que emprega maior reconhecimento para o seu cotidiano antes invisibilizado. Na breve história, após uma festa, o personagem retorna para o lar e sofre com o atropelamento de um grupo de jovens que entram em desespero após o acontecimento fatídico. Ao mesmo tempo que narra a situação, Zacarias também resgata memórias do passado e delineia cada ação dos jovens que não sabem qual destino dar ao cadáver. Jogar na ribanceira? Despejar na porta do necrotério? Como lidar?

Fica destacado, ao redesenhar os momentos após o atropelamento, que os envolvidos estavam alcoolizados e a condução, muito perigosa, causou o sinistro que poderia ter sido evitado. Alguns querem dar um jeito, outros não querem colocar no carro para deslocamento, pois o individuo morto pode sujar o interior do veículo, um símbolo de status que precisa estar sempre impecavelmente limpo. Nós acompanhamos tudo isso, enquanto o narrador-personagem nos conta o quão absurdas são as escolhas para o seu corpo sem vida. No meio de toda a confusão, trafegamos pela densidade de suas memórias, com lembranças que envolvem uma professora do colegial e brincadeiras da infância. Com ironia e percepção sensorial muito peculiar, a figura ficcional fantástica concebida por Murilo Rubião apresenta muitos traços de outro morto narrador da nossa literatura, Quincas Berro D’agua, do renomado romance de Jorge Amado. Por meio de ironias e humor cheio de criticidade, ambas as histórias retratam a nova condição de seus personagens após a morte, momento de apagamento circunstancial que se torna um destaque.

Ao viver num mundo que não pode ser modificado, Zacarias é um personagem sem saída, sufocado pela existência que antes não lhe era valorizada. Nesta história insólita, o morto-vivo transita entre dois mundos e foge da nossa lógica tradicional de compreensão dos fenômenos que envolvem as nossas vidas. No desenvolvimento do conto, Murilo Rubião traça um painel de situações próprias do realismo fantástico, momentos surreais e inexplicáveis para a nossa já mencionada lógica. Ele se mantém em nosso plano, tal como Brás Cubas, de Machado de Assis, salvaguardadas as devidas proporções, para contar aos leitores, as mudanças de sua vida, um antes comparado ao depois, numa história com numerosas interpretações, estudada amplamente no meio acadêmico, circundante pelos vestibulares de todo o país e também debatido em salas de literatura do Ensino Médio. Aos interessados pela navegação, é um conto de leitura tranquila, fluente, mas é preciso ler mais de uma vez para melhor compreender a complexidade da história.

Sabemos que a interpretação é livre, mas nem tudo está situado na superfície. É preciso se aprofundar para ter acesso ao feixe de camadas propostas por Murilo Rubião, escritor que na função dupla de jornalista, sabia exatamente como contar algo de maneira a aguçar a nossa curiosidade, pavimentando uma trajetória coesa e sucinta para o personagem, mas sem deixar de estabelecer pormenores que por meio de pequenas passagens, deixem uma imensa possibilidade de leituras e interpretações. Encenada no teatro várias vezes aqui no Brasil, a história fantástica de O Pirotécnico Zacarias bem que merecia uma série televisiva ou um filme marcante, produções capazes de captar todo o potencial narrativo do conto e transforma-lo numa saga possivelmente assustadora, mas repleta de camadas generosas de ironia. Em associação com o nosso cotidiano violento, percebemos que tal como o narrador, há vários “Zacarias” por todo o nosso território, encontrados pela polícia em situações criminosas, abandonados por condutores aterrorizados com os desdobramentos dos sinistros em que se envolvem. São terríveis histórias reais que reforçam as potencialidades do conto literário analisado.

O Pirotécnico Zacarias (Brasil, 1947)
Autor: Murilo Rubião
Editora original: Companhia das Letras
3 páginas

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais