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Crítica | O Poço (2019)

por Luiz Santiago
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Você já viu este filme antes, mas em outro formato: numa certa aula de História sobre estruturas sociais e em algum momento de uma aula de Geografia ou Sociologia. Ao estabelecer a divisão em classes, castas, estamentos de uma determinada sociedade em um determinado tempo, você já viu um professor desenhar a famosa “pirâmide social“. Esse modelo é bastante utilizado por ser dinâmico ao apontar a importância que cada grupo possui numa civilização, sendo dado, portanto, todos os privilégios possíveis para os que estão no topo da pirâmide e as sobras ou nada para os que estão na base. Evidente que cada formação econômico-social possui caraterísticas mais complexas que a hierarquia em si, mas no fim das contas, a representação continua exata, mesmo havendo contexto, condições e sonhos de oportunidades de ascensão a se considerar dependendo do lugar e tempo histórico analisados.

E por que eu disse que você já viu este filme antes, mas em outro formato? Porque O Poço é “simplesmente” a representação em audiovisual daquela pirâmide social que você tanto viu na lousa e tanto desenhou no caderno. Sim, eu poderia dizer que bastava olhar pela janela ou assistir aos noticiários para ver claramente o funcionamento das pirâmides sociais pelo mundo a fora. Mas quem se importa com a realidade, não é mesmo? Uma das coisas boas da arte é que ela pode nos afastar da realidade para, através da ficção (seja ela baseada em fatos ou não) mostrar aquilo que vivemos no dia a dia. Parece ironia, mas não é. Viver a realidade faz com que as muitas paixões do cotidiano tampem ou alterem a visão de alguns para os problemas à sua volta. Mas quando vemos isso representado num filme, numa série, num livro, aí a coisa parece ganhar a dimensão e a atenção que não estávamos dando. Vai entender.

El Hoyo é o primeiro longa-metragem do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, que no cinema tem maior experiência como produtor. Escrito por David Desola e Pedro Rivero, o texto acompanha Goreng (personagem interpretado de maneira aplaudível por Ivan Massagué), que por vontade própria está em uma prisão vertical, modelo que funciona com uma cela por nível e com dois prisioneiros por cela, embora não haja muito controle em relação a isso. A cada mês, os presos são colocados em um nível diferente e isso não seria problema nenhum se essa mudança não significasse acesso a comida: uma plataforma com um verdadeiro banquete desce do nível zero (a cozinha) até o nível 300 e pouco, parando por um tempo determinado em cada nível. O que se vê não é nada estranho a nenhum de nós: as pessoas dos primeiros níveis comem do bom e do melhor e o que não querem + as sobras do que comeram desce para os níveis inferiores. Até chegar a um ponto onde não existe mais comida para os que estão em níveis bem baixos. O canibalismo, para os da base da pirâmide, é a saída.

O modelo de estratificação social é representado aqui de forma muito inteligente e também muito clara. Somada a essa visão geral da sociedade, alguns espectadores podem até fazer leituras específicas atribuindo símbolos, metáforas e arquétipos aos personagens em cena, embora eu advirta que isso deva ser feito com cuidado porque o roteiro está claramente preocupado em apresentar algo intensamente crítico no exterior (a prisão vertical e a questão da comida) enquanto o particular de cada personagem e suas características psicológicas, emocionais, etc. servem como molas para tornar a trama ainda mais diferente, ponto exato onde o filme começa a ter problemas, já que as coisas acabam se opondo demais e o espectador, que em um momento achava estar lidando unicamente com algo mais prático, mais socialmente identificável, crítico, relacionável, deve considerar pitadas de fantasia horrorífica e alguns elementos inexplicáveis no final.

O confinamento e as condições de vida aqui são ainda ressaltados pelo tipo de cenário utilizado, pela simplicidade do set — um simples e eficiente trabalho do desenho de produção — e pela opressiva direção de fotografia, destacando ao mesmo tempo sentimentos de solidão, abandono, perigo e doença através de diferentes filtros de cores no decorrer do filme e dependendo do tipo de ação em jogo (vermelho, azul e cinza formam a paleta básica aqui). Dada a situação inicial e entendido como funciona a prisão, o roteiro procura integrar ao definhamento físico, as típicas perturbações emocionais e psicológicas de quem está sob constante stress, isolamento e privação de alguma coisa. Até aí, tudo coerente com a proposta do filme, inclusive as alucinações, que passam a ser frequentes a partir de certo ponto. Mesmo com esse exagero e sem nenhum sentido prático além dela mesma, é possível lidar com essa escolha do roteiro. O que não dá para lidar é com os buracos no argumento para a existência da prisão e com o arco da criança perdida.

SPOILERS!

Depois de tudo o que vimos os adultos passarem, é absolutamente impossível aceitar que uma criança esteja salva, aparentemente sem marcas de violência física e bem nutrida, como a menina que Goreng e Baharat encontram. Esse derradeiro caminho do roteiro (a descida da dupla em cima da plataforma) nos faz questionar, inclusive, o por quê Miharu não havia encontrado a filha até aquele momento. É improvável que ela tenha ficado em níveis muito baixos em algum momento, mas diante do que vimos se repetir, também parece improvável que a mãe não tenha conseguido descer até um nível onde a garota estava por todo esse tempo. Este é o ponto do filme em que perguntas demais aparecem e onde a realidade dá lugar ao horror de caráter sobrenatural, com mistérios desnecessários brotando.

Não há, em essência, nada para se entender de forma prática no fim do filme, apenas aludir a significados de ordem simbólica. E aí se fecha o ciclo de impasses: é perfeitamente aceitável integrar realismo ao sobrenatural, numa trama que se pretende crítica à sociedade, desde que o espaço realista permaneça em evidência. O que ocorre no final de O Poço é uma fuga de tema. Sim, “a mensagem” através da menina (supõe-se que) chegará à administração, mas e aí? E aquele nível do chão? E aquela alucinação final com Trimagasi? Goreng estava morto? Mas aí o filme falha na representação do personagem nessa reta final, como protetor da menina, não? Vejam a quantidade de perguntas que surgem por conta de um capricho falho do roteiro.

Antes tivessem mantido a objetividade dura e angustiante das classes sociais comparadas à prisão e deixassem essa mística dose de lado. Ainda assim, ficaria sem explicação as condições verdadeiras para a entrada na própria prisão e o contexto social que a gerou. Mas pelo menos o filme fecharia o seu ciclo dentro daquilo que ele faz de melhor: espelhar de maneira gore a realidade do mundo hoje. E se pensarmos bem nos termos de “pegar para si apenas o que é necessário, deixando também para os outros que precisam“, a obra, que estreou na Espanha em novembro de 2019, se torna uma verdadeira profecia para o consumo de víveres e produtos de higiene que a realidade do planeta sob o Coronavírus nos traz em 2020. Senhoras e senhores, bem-vindos à civilização do animal mais inteligente do planeta.

O Poço (El Hoyo) — Espanha, 2019
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Roteiro: David Desola, Pedro Rivero
Elenco: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan, Emilio Buale, Alexandra Masangkay, Zihara Llana, Mario Pardo, Algis Arlauskas, Txubio Fernández de Jáuregui, Eric Goode, Óscar Oliver, Chema Trujillo, Miriam Martín, Gorka Zufiaurre, Miriam K. Martxante
Duração: 94 min.

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