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Crítica | O Poderoso Chefão

Um tesouro cinematográfico.

por Ritter Fan
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  • spoilers, mas, se você não viu esse filme, por favor pare tudo o que está fazendo e corra para ver!

Os méritos de O Poderoso Chefão, um dos melhores e mais influentes filmes americanos da História do Cinema, ficam ainda mais salientes quando lembramos o que aconteceu em seus bastidores, inclusive muito antes de a primeira palavra do romance ser escrita. Afinal, o livro em que o filme é baseado foi escrito a contragosto por seu autor, Mario Puzo, com o objetivo declarado de ganhar dinheiro, já que suas obras anteriores, que, essas sim, ele considerava como manifestações artísticas puras, foram fracassos de público. Como se isso não bastasse, as primeiras versões do roteiro, também escritas por Puzo com toda a má vontade do mundo e obedecendo ordens diretas da produção, situavam a ação no presente para baratear custos e focava naquilo que vendia, ou seja, tiros, mortes e sexo.

Além disso, todo o processo de produção foi um verdadeiro inferno para todos os envolvidos em razão de visões bem diferentes entre Robert “Bob” Evans, o chefe da Paramount na época, e Francis Ford Coppola, o então razoavelmente inexperiente diretor, do envolvimento direto da máfia que literalmente paralisou a produção em Nova York antes mesmo de ela começar, obrigando a Albert S. “Al” Rudy, o produtor, a negociar diretamente com Joseph Colombo, chefão da família Colombo, uma das mais importantes da máfia local e a desconfiança da própria equipe em relação a Coppola que, para eles, parecia completamente perdido. Para todos os efeitos, portanto, O Poderoso Chefão não era para existir como existe e o fato de ele ser quase que unanimemente considerado um dos expoentes da Sétima Arte que é uma aula de Cinema em si mesmo e que influenciou e influencia gerações de cineastas e espectadores – e a cultura pop em geral – e que inclusive começou a mudar até mesmo o processo de produção e distribuição de uma obra cinematográfica nos EUA, o que seria sedimentado não muito tempo depois com Tubarão, o “primeiro” blockbuster, é um daqueles milagres que desafiam racionalizações.

E o que fez O Poderoso Chefão funcionar à época de seu lançamento e o que faz ele funcionar praticamente com a mesma força também hoje em dia? Óbvio que não existe uma resposta única para essa pergunta quase retórica, mas o histórico silêncio completo ao final das primeiras sessões do filme em Nova York e Los Angeles, silêncio esse que preocupou Coppola, Rudy e todos os envolvidos, talvez ajude-nos a vislumbrar pelo menos uma das razões. Para começo de conversa, sabemos que o filme foi um enorme sucesso de bilheteria, com filas que davam voltas nos quarteirões por semanas a fio após o lançamento, algo que ninguém, absolutamente ninguém esperava (Coppola sequer estava nos EUA na época e soube pelo telefone, para sua completa surpresa), pelo que o silêncio foi, claro, de aprovação. Mas fazer o público heterogêneo que vai ao cinema ficar calado – em uníssono – ao final de um sessão não é para qualquer um e é evidente que O Poderoso Chefão teve esse poder, algo que podemos talvez resumir em sua temática subjacente, ou seja a Família, o Sonho Americano e o Capitalismo, conceitos entrelaçados profundamente na história americana.

“Eu acredito na América.” – célebre frase que abre o longa dita por Amerigo Buonasera (Salvatore Corsitto), um agente funerário que teve sua filha espancada brutalmente por dois homens que saíram livres do Sistema Judiciário e que agora pede um favor a Don Vito Corleone (Marlon Brando que, não é lenda, criou as famosas bochechas caídas do personagem em frente a um Coppola impressionado em um “teste de câmera”, saindo de uma série de gigantescos fracassos e reerguendo sua carreira) no dia do casamento de sua filha Connie (Talia Shire, irmã do diretor, em um de seus famosos – e melhores – momentos nepotistas), encapsula os dois conceitos acima perfeita e imediatamente. Um pai que teve sua família despedaçada e que procurou a Justiça de acordo com o que a lei dita e só conseguiu sorrisos de vitória dos malfeitores em pleno tribunal, agora precisa que um conhecido líder da Mafia conceda-lhe o que procura. O Sonho Americano falhou? O Capitalismo falhou? Não. Esse é o Sonho Americano e o Capitalismo. Ou pesadelo, mais precisamente. E o que o filme faz, subliminarmente – ma non troppo – é jogar isso na cara do público logo na cena de abertura que conversa diretamente com a cena de encerramento, com Michael (Al Pacino, um completo desconhecido escalado por Coppola com base no que ele viu do ator em uma peça de teatro), o filho mais jovem e certinho de Vito, a esperança de um pai em legitimar sua família, assumindo de vez a posição de “Don” e afastando sua família, representada pela americana de ascendência irlandesa Kay Adams, nesse ponto do filme Kay Corleone (Diane Keaton), do seio de seus negócios.

Entre esses dois magníficos e irretocáveis momentos, existem algo como 170 minutos que são igualmente magníficos e irretocáveis (confiram a lista que preparei entrando em detalhes das cenas mais memoráveis), começando por 27 inacreditáveis minutos de uma sequência preambular que gira em torno do já citado casamento de Connie com seu futuro abusador Carlo Rizzi (Gianni Russo) e que funciona para nos apresentar a dois mundos e a todos os personagens-chave. Temos o mundo das sombras representado pelo escuro e claustrofóbico escritório de Don Vito Corleone em que o vemos operar o submundo que governa e cujos únicos fachos de luz vêm das persianas da janela e um único momento em que a porta entreaberta permite que observamos, por brevíssimos segundos, a movimentação da casa em torno do casamento acontecendo do lado de fora. E, claro, o lado da luz é o casamento em si, ainda que essa luz seja enganosa, mas também proveitosa para que aprendamos sobre cada um dos membros de sangue da família Corleone que, de certa forma forma, representam as facetas do pai: Santino “Sonny” Corleone (James Caan cujas conexões com a Mafia era reais e ajudaram na produção do longa), o filho mais velho e herdeiro direto do império é visto como um homem bruto e esquentado (a cena em que ele quebra a câmera do repórter é emblemática – além de ter sido improvisada, assim como o famoso “bada-bing” mais para a frente), além de adúltero; Frederico “Fredo” Corleone (John Cazale em uma performance sem espaço, mas que o ator consegue tirar leite de pedra), caracterizado como emocional e mentalmente frágil e, claro, Michael Corleone, o soldado recém-retornado da Segunda Guerra Mundial que nunca quis e não quer nada com os negócios da família, mas que é imediatamente rotulado não só como inteligente e perspicaz, ciente de tudo ao seu redor, como alguém que muito claramente tem admiração por seu pai, mãe e irmãos.

A sequência do casamento encapsula a integralidade do filme. Em retrospecto, podemos conectar cada evento posterior ao que acontece ali, mas os catalizadores seguintes, mais diretamente a discordância indireta que um explosivo Sonny verbaliza em seu comentário fora de tempo em reunião do pai com Virgil “O Turco” Sollozzo (Al Lettieri), que deseja investimento e acesso aos contatos dos Corleones para seu negócio de drogas, são suficientes para fazer todo o filme caminhar fluida e naturalmente, com os eventos seguintes – o atentado a Don Vito, o assassinato de Sollozzo e do capitão de polícia corrupto Mark McCluskey (Sterling Hayden) por Michael, o exílio de Michael na Sicília, o assassinato da bela Apollonia (Simonetta Stefanelli), primeira esposa de Michael e, claro, a efetiva transformação de Michael no Padrinho do título (pois é Michael Corleone, e não Vito, a que o título verdadeiramente alude) com o extermínio dos líderes de todas as famílias mafiosas de Nova York e alguns agregados. É como uma sinfonia regida à perfeição, sem soluços, sem barrigas, sem diálogos fora do lugar.

Ver a transformação de Michael no literal Satã – a quem ele “renuncia” – na memorável sequência do batismo que contrasta o sagrado e o profano, a vida e a morte, a pureza e a podridão de maneira inteligentíssima graças à edição de William Reynolds e Peter Zinner, é uma dádiva que poucos filmes souberam replicar mesmo que parcialmente. Al Pacino tem momentos de atuação – como a sequência em que, com o zoom in lento, ele, com a bochecha inchada como a do pai, diz que matará Sollozzo e McCluskey – que rivalizam e ultrapassam Brando em intensidade e representação de um peso enorme no ombro, peso esse que ele jamais quis, mas não tem como negar. É triste, é melancólico, mas é também heroico – impossível não vibrar com a tensa sequência em que ele e o assistente de padeiro Enzo Aguello (Gabriele Torrei) salvam Vito no hospital arriscando suas vidas – e profundamente humano ver essa jornada. Mas é também de certa forma vergonhoso que torçamos tanto para personagens que são essencialmente assassinos, outro triunfo de Coppola e um comentário direto, claro e potente sobre o já citado Sonho Americano ou o “jeito americano de ser”.

Retornando ao completo caos na produção, é curioso notar como os nomes principais atrás das câmeras, Gordon Willis na fotografia, Dean Tavoularis no design de produção, Warren Clymer na direção de arte, Philip Smith nos cenários, Anna Hill Johnstone nos figurinos, estavam inicialmente completamente de acordo com a direção que Coppola imaginava para seu filme e como essa concordância foi aos poucos ruindo na medida em que o diretor exigia mais e mais takes e parecia perder o controle da produção, com rumores fortes de que ele seria substituído aparecendo a todo minuto. A coesão visionária da obra chegou a ser ameaçada por essa perda de confiança em Coppola, o que acabou exigindo a intervenção direta de Al Rudy para abafar as fofocas e reafirmar que a Paramount estava 100% por trás do diretor – uma mentira deslavada, pois, realmente, diversos outros diretores de renome na época foram contatados com a fotografia principal a pleno vapor já – e de suas decisões. Mesmo assim, considerando o estado das coisas, é inacreditável que esses profissionais todos tenham entregue o nível de trabalho que entregaram.

Vejam Willis, o diretor de fotografia, por exemplo. Tecnicamente, ele tinha ainda menos experiência que Coppola em produções cinematográficas e, hoje, não é possível falarmos em fotografia colorida sombria sem lembrarmos de seu trabalho em O Poderoso Chefão. O escuro é um personagem no filme, é seu começo inclusive, potente como nunca antes usado. A frase inicial e o rosto de quem a fala são envoltos em puro breu que é vagarosamente quebrado na medida em que o restante da paleta de cores do filme é finalmente introduzido. Sim, o restante todo está ali presente na cena de abertura no escritório de Don Vito Corleone. O preto e o branco “quebrados” pelo vermelho e os tons térreos dominam a cena e também a fotografia externa do casamento. Mesmo quando o filme se muda para a Sicília, para acompanharmos o exílio de Michael por lá – com filmagem em locação, para desespero da Paramount que primeiro queria corta toda a sequência e, depois, queria fazer tudo em Los Angeles -, a paleta de cores de Willis é mantida, mesmo que aparência do filme mude quase que completamente, como em um interlúdio fabulesco que só é interrompido pela explosão do carro que mata Apollonia, com os tons térreos sendo apenas exacerbados. Como essa coesão visual foi mantida apesar dos problemas de bastidores, eu não tenho resposta, mas tenho para mim que a visão de Coppola, que ele muito claramente externou a seus pares em reuniões pré-produção, parece ter sido gravada na mente de todos ao seu redor.

Essa visão, aliás, fica clara pela insistência de Coppola em usar a trilha sonora composta por Nino Rota que Bob Evans odiou com todas as suas forças por achar melancólica demais. Coppola caçara Rota na Itália, pois o compositor notoriamente era uma pessoa difícil, e o contratara para o trabalho sem sequer tentar outra pessoa, adorando tudo o que ele fizera menos o tema de Apollonia, que teve que ser retrabalhado. O filme chegou a ser sincronizado com duas trilhas até, de forma a mudar a cabeça de Evans, o que, a história mostra, acabou acontecendo a duras penas. Sem os acordes em trompete quebrando a tela preta do início do filme, após os nomes do estúdio e da obra, O Poderoso Chefão não seria a mesma coisa. A melancolia da trilha marca o tom do filme de seu começo até o último segundo com a porta de Michael sendo metaforicamente fechada na cara de Kay. Há uma potência musical no longa que vemos também no uso de canções preexistentes como a siciliana C’e La Luna Mezz’o Mare interpretada comportada e indecentemente sem solução de continuidade no casamento de Connie (novamente, contrastes…) e toda a trama envolvendo o stand-in de Frank Sinatra (que, aliás, odiava Mario Puzo por causa disso no livro) Johnny Fontane (Al Martino), pivô da icônica cena da cabeça de cavalo na cama do produtor Jack Woltz (John Marley).

O Poderoso Chefão é a encarnação de todas as hipérboles possíveis que, porém, sequer conseguem ser entusiásticas o suficiente para realmente fazerem jus ao que o filme realmente é. Um marco cinematográfico? Revelação – e redescoberta – de grandes artistas? Aula magna de Cinema? Diversão profundamente inteligente? Obra-prima irretocável? Olha, não sei, pois quaisquer desses descritores ou o conjunto deles acabam sendo reducionistas. A única coisa que realmente sei é que, depois de escrever esse texto, eu já quero ver o filme novamente e isso é o que basta para provar a força atemporal de um filme que desafiou todas as probabilidades – artísticas, financeiras, práticas e tudo mais – para ser o que acabou sendo.

O Poderoso Chefão (The Godfather – EUA, 1972)
Direção:
Francis Ford Coppola
Roteiro: Mario Puzo, Francis Ford Coppola
Elenco: Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Talia Shire, John Cazale, Robert Duvall, Diane Keaton, Richard Castellano, Sterling Hayden, John Marley, Richard Conte, Al Lettieri, Abe Vigoda, Gianni Russo, Rudy Bond, Al Martino, Sterling Hayden, Morgana King, Lenny Montana, Johnny Martino, Salvatore Corsitto, Richard Bright, Alex Rocco, Simonetta Stefanelli, Tony Giorgio, Angelo Infanti, Franco Citti, Joe Spinell, Corrado Gaipa, Gabriele Torrei
Duração: 175 min.

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