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Crítica | O Predestinado (2014)

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Em 1959 foi publicado na revista Fantasy and Science Fiction o conto All You Zombies, escrito por Robert A. Heinlein, um dos grandes e controversos escritores de ficção científica que viveu e produziu durante a era de ouro do gênero nos Estados Unidos. Dentre uma de suas grandes paixões estava o tema de viagem no tempo e, de forma muito mais forte, a ocorrência de paradoxos temporais durante essas viagens. Foi com isso em mente que Heinlein escreveu All You Zombies, uma história onde os personagens de destaque envolvidos são exatamente a mesma pessoa em fases diferentes da vida.

Baseados nesse conto, os irmãos MichaelPeter Spierig (de Canibais e 2019 – O Ano da Extinção) escreveram o roteiro de O Predestinado (2014), filme que explora com toda pompa, circunstância e genialidade as possibilidades enlouquecedoras do Paradoxo da Predestinação, respeitando ao máximo os elementos gerais do conto, inclusive reproduzindo diálogos inteiros da obra de Heinlein e adicionando uma perspectiva Retrofuturista na localização de uma versão da Terra que desenvolveu a viagem no tempo em 1981.

A direção de fotografia do filme fica a cargo de Ben Nott, que recria atmosferas não muito contrastantes mas mesmo assim únicas para cada um dos tempos visitados, de modo que cada ambientação sirva para delinear características psicológicas dos personagens. Algo idêntico se dá com a excelente escolha dos figurinos, que obedecem a um padrão de gosto similar, mas com características diferentes de moda/tempo. Todos, porém, são austeros e de cores frias, o que já nos indica elementos da psicologia do indivíduo central. Mais interessante ainda é que a composição dos figurinos para Jane é inicialmente de cores neutras e levemente frias mas aos poucos suas roupas vão se escurecendo, passando de tons de bege, branco e verde para tons de azul, marrom, cinza e preto. As variações nesse padrões são poucas, o que nos indica que a história também vai sendo contada através do guarda-roupa da personagem, que, observem com atenção, contrasta com a com a fotografia até os anos 1970, tendendo a se integrar com o ambiente a partir do “Evento Zero”, ou seja, da criação da viagem no tempo.

O trabalho da equipe de maquiagem também merece destaque, especialmente na construção das cicatrizes e na transformação da atriz Sarah Snook, que, por sinal, tem uma interpretação de tirar o fôlego, muito melhor que a de Ethan Hawke. Fechando o ciclo dos setores técnicos de destaque e que são easter-eggs que nos ajudam a entender melhor o filme, está a trilha sonora, que na parte orquestral opta por temas simples, curtos e ligados ao suspense; e dentre as canções traz I’m My Own Grandpa justamente na sequência do bar, que é onde o “primeiro encontro de tempos” acontece, tendo o ponto de vista do espectador como base.

A pergunta que nos fazemos neste momento da narrativa é: quem é o quê? Porque a primeira impressão que temos quando John (The Unmarried Mother) entra no bar e começa a conversar com o Barkeep é que ele é o Fizzle Bomber e o Barkeep está fazendo um joguinho para enfim capturá-lo e terminar a missão. Não parece algo simples, mas o primeiro raciocínio gira em torno disso: o personagem de Ethan Hawke veio do futuro para impedir que o Fizzle Bomber detone a bomba que irá matar milhares de novaiorquinos. Esta versão dos anos 1970 é a sua segunda tentativa, após falhar uma vez na mesma missão e ter o seu rosto gravemente queimado, o que fez com que uma reconstituição fosse feita, suas cordas vocais fossem afetadas e ele se olhasse no espelho pela primeira vez e dissesse: “I’ve changed so much, I doubt my own mother would recognize me“, uma frase que só tem graça depois que descobrimos que ele é a sua própria mãe. E pai também.

Creio que não exista um espectador que não fique de boca aberta pela forma inteligente como os irmãos Spierig utilizam o conto de Heinlein e criam uma caçada cujo significado é muito maior do que parece. Na primeira parte do filme, em todo o flashback que temos a partir da sequência do bar, a minha sensação foi de franco desapontamento porque, por mais interessante que seja a dinâmica entre Hawke e Snook, a sequência é longa demais e acaba nos afastando desnecessariamente. No bloco seguinte, no entanto, percebemos que esse tempo era necessário para que conhecêssemos a origem da personagem, sua chegada até aquele momento e levantássemos algumas dúvidas sobre sua identidade e a missão do Barkeep, aparentemente abandonada.

As surpresas que se seguem, no entanto, justificam esse momento e vão colocando cada peça em seu lugar, inclusive reafirmando algo que pode servir de resposta prévia para algumas perguntas após o final da película: e se tudo TIVER QUE ACONTECER? Não podemos nos esquecer que a premissa do filme é a da predestinação, então não importa o que for feito, o ciclo irá ser completado e todas as partes terão um papel muito especial nisso. Nem todos funcionam bem o tempo inteiro, nem todos estão perfeitamente localizados ou se relacionam bem com a narrativa do momento, mas vendo o roteiro por inteiro, os pequenos diálogos estranhos e as ações questionáveis acabam sendo facilmente perdoados. O Predestinado jamais deixa de ser um filme cativante e divertido pelos pequenos erros e incoerências que traz em seu desenvolvimento. E convenhamos: olha a complexidade e coragem disso tudo. Algumas incoerências são inevitáveis!

Os roteiristas tiveram o bom senso de expandir aquilo que é apenas brevemente sugerido no conto: as questões humanas que mudam e se intensificam para a personagem ao longo da vida. Os problemas de uma criança rejeitada evoluem para um deslocamento do mundo, para a amargura gerada pela solidão, para a busca por ser melhor em tudo e se distanciar cada vez mais dos outros. E ainda para o descontentamento progressivo da vida, a busca por vingança, a busca por um propósito e, enfim, um propósito para cumprir… É espantoso como o texto consegue encaixar esses sentimentos em fases diferentes e fazer com que eles tenham sentido para a mesma pessoa em cada um desses pontos. Ao lado de acessórios como os óculos, que mantém armações parecidas e a mesma dinâmica para coreografia de luta, esses aspectos existenciais vão moldando as quatro pessoas que são uma só (Jane/John/Barkeep/Fizzle Bomber) e que por caminhos diferentes, acabam chegando no mesmo lugar. Todos possuem algum grau de loucura e ousadia, todos estão deslocados do mundo, todos estão procurando por alguma coisa, todos estão prestes a ter suas vidas completamente transformadas. É assustador.

Há um certo debate sobre o papel ainda maior de Mr. Robertson em toda essa história. É dito mais de uma vez que ele está “por trás de tudo“, que ele “moldou e armou tudo aquilo“. Descobri que há algumas teorias que dão conta de que ele é uma versão de Jane/John/Barkeep/Fizzle Bomber, mas isso é um pouco difícil de aceitar, porque o arco de história da vida dessa personagem dividida em 4 é repassado com precisão no decorrer de todo o filme e inclusive recebe uma revisão ao final. Em termos de narrativa, por mais interessante que seja o pensamento de que Robertson voltou no tempo para apagar seus rastros e impedir que as investigações da Agência do Tempo chegassem nele (que no passado fora o Fizzle Bomber), não dá para ver como isso sobrevive ao falseamento do “apagar ações inteiras da linha do tempo da mesma pessoa“. Isso quebraria com a dinâmica do filme e de elementos cuidadosamente desenvolvidos como a predestinação, o paradoxo do avô, dos loops e de Bootstrap.

Mas é claro que há uma possibilidade de explicação. Em dado momento da fita, o personagem de Hawke diz que há “11 agentes temporais“. Nesse caso, podemos assumir que O Predestinado foi a vida de um desses agentes que são a mesma pessoa, mas, na verdade, existem outras linhas que funcionam sob a mesma premissa e elas podem ser formadas por variações de Jane/John/Barkeep/Fizzle Bomber, onde o produto final não seria o terrorista mas sim Mr. Robertson. Alguns espectadores até formularam explicações onde o sequestro da bebê Jane em 1964 ocorre duas vezes, uma feita por Mr. Robertson, em sua primeira vivência de intervenção e outra pelo Barkeep, que, curiosamente, tem a visita de Mr. Robertson justamente naquele momento. Chega a explodir a mente o fato de, assim como o Barkeep, Mr. Robertson também ter bigodinho e principalmente o fato de Mr. Robertson jamais envelhecer (é a mesma face desde o recrutamento de Jane para a Space Corp). As semelhanças são muitas, as coincidências são muitas e o fato de o filme nos deixar com uma pequena grande bomba narrativa (e conceitual, por que não?) nas mãos é um elemento positivo porque gera discussão e a possibilidade de criarmos teorias e formas diferentes de organizar o andamento da saga.

Ao final, quando o Barkeep se levanta da mesa e vemos as cicatrizes da retirada dos seios e da cesariana, não dá para não deixar o queixo cair até onde é possível. O encadeamento dos fatos e a última revelação fecha o ciclo de forma perfeita e ainda entra em uma auto-referência/análise que comporta a longa transformação psicológica e física do protagonista, trazendo uma pergunta, “Quando ele atacará novamente?” — o que mais uma vez nos leva a crer que a predestinação continuará ativa, lembrando que o próprio Barkeep já havia dito que o Fizzle Bomber vivia “mudando o dia” [do ataque], ou seja, aquilo provavelmente já havia acontecido outras vezes, em outras realidades/linhas do tempo. Uma coisa é certa: ao terminar a sessão de O Predestinado, nossos cérebros estão em pedaços, todos espalhado desordenadamente pelo chão. Que filme, senhoras e senhores! Que filme!

O Predestinado (Predestination) — Austrália, 2014
Direção: Michael Spierig, Peter Spierig (The Spierig Brothers)
Roteiro: Michael Spierig, Peter Spierig (The Spierig Brothers), baseados em um conto de Robert A. Heinlein.
Elenco: Ethan Hawke, Sarah Snook, Christopher Kirby, Christopher Sommers, Kuni Hashimoto, Sara El-Yafi, Paul Moder
Duração: 97 min.

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