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Crítica | O Problema de Nascer

por Rodrigo Pereira
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O Problema de Nascer é um filme que possibilita abordagens diversas acerca do que apresenta. Uma das mais interessantes que tive contato foi sobre como a relação do ser humano com a tecnologia presente na obra tenderia a uma utilização problemática, algo já possível de testemunhar com tecnologias existentes e presentes em nosso cotidiano. Todavia, acredito que sua maior qualidade reside na proposta de debate da memória e como lidamos com ela.

Dirigido pela austríaca Sandra Wollner, o longa tem como protagonista Elli (Lena Watson), uma androide capaz de armazenar as lembranças de outras pessoas e simular em si o que for ordenado. Ela mora numa casa aparentemente isolada junto de um homem a quem chama de pai (Dominik Warta), com quem divide sua rotina entre nadar na piscina durante o dia e dormir juntos à noite. Aos poucos, percebemos que essa relação não é somente afetuosa e carinhosa como deve ser entre pai e filha, existe uma relação sexual.

E, consequentemente, de pedofilia, já que Elli tem aparência de uma criança em torno de 10 anos. Entretanto, como algumas opiniões mais revoltadas possam levar a crer, não há uma romantização do ato, pelo contrário. A construção dessa relação abusiva serve como um relato do que aquele homem fez com sua própria filha no passado.

Assim como as memórias projetadas nela pertencem a ele, Elli constantemente repete que passará a tarde com seu pai, que “a mãe não deixaria isso acontecer” e que “ela não precisa saber de tudo, certo?”. O questionamento ao final marca a falta de consciência da gravidade da ação tanto da criança quanto da androide, algo meio metalinguístico entre a ficção e a realidade e revela o que o homem fez no passado.

Conforme avançamos na história, compreendemos o porquê a diretora nos apresenta àquelas sequências, pois Elli vai em direção a um chamado, fugindo de sua rotina e da presença do homem. Ao fazer isso, ela acaba encontrando uma mulher idosa (Ingrid Burkhard) e passa a conviver junto dela. Da mesma forma que acontecia com seu “pai”, a androide começa a projetar as lembranças da mulher e assume aparência e memória de seu falecido irmão, morto na adolescência.

Aqui temos o elo de ligação entre as histórias apresentadas. Tanto o homem quanto a mulher são prisioneiros de seu passado, onde suas ações geraram consequências que se tornaram intrínsecas a si, impossíveis de serem apagadas, os condenando a viver com aquilo pelo resto de seus dias. Ambos vivem (ou tentam) acompanhados das memórias eternamente retornando ao seu pensamento, quase como um pesadelo.

Por falar em pesadelo, vale destacar a qualidade do trabalho de som. Sempre que a androide realiza movimentos, principalmente mais intensos, é possível ouvir os mecanismos de seu corpo, que são encaixados com incrível precisão. O mais marcante, porém, fica a cargo das sequências na floresta. Existem momentos que beiram o terror, nos trazendo a sensação de que algo muito ruim está prestes a acontecer, como quando Elli vai embora definitivamente da casa do homem (o que pode ser interpretado como a memória da criança tentando se livrar do pesadelo que era submetida). Os sons somados à imagem extremamente escura e pouco nítida, sendo possível enxergar somente os troncos das árvores, nos colocam em um ambiente apavorante, meio claustrofóbico e nos induz a um aparente perigo iminente.

Apesar de perder um pouco o bom ritmo em alguns momentos, O Problema de Nascer é uma ótima projeção e extremamente provocadora. Ao contrário do que algumas opiniões possam atestar, não há nenhuma exaltação ou romantização da pedofilia. Abordar um tema, em um filme ou qualquer outra obra de arte, não é necessariamente concordar com ele, mas estar disposto a refletir e debater suas consequências a partir do ponto de vista dos realizadores. E isso é algo que Wollner faz muito bem.

O Problema de Nascer (The Trouble of Being Born) – Alemanha, Áustria, 2020
Direção: Sandra Wollner
Roteiro: Roderick Warich, Sandra Wollner
Elenco: Lena Watson, Dominik Warta, Ingrid Burkhard, Jana McKinnon, Susanne Gschwendtner, Simon Hatzl
Duração: 94 min.

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