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Crítica | O Protetor do Irmão

por Michel Gutwilen
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Ser convidado a olhar o espaço de uma escola para meninos como um microcosmo totalitário e hierárquico que exprime complexos de masculinidade não é exatamente um tipo de material muito novo na história do Cinema. Da obra-prima clássica Zero de Conduta até ao curta Botões Dourados, que esteve no Olhar de Cinema 2020, muito já se fez com este tema, principalmente se pensarmos que o caminho narrativo mais comum é o da subversão destes espaços. Nesse tipo de filme, é como se esse próprio sistema estivesse fadado a implodir e a rebeldia fosse um destino incontornável, com o surgimento de um movimento anarquizante frente ao status quo. Logo, em uma tentativa de pensar O Protetor do Irmão dentro deste contexto, é curioso perceber o que o filme faz de diferente aqui para justificar sua existência enquanto uma obra verdadeiramente original e não mero pastiche de um subtema à primeira vista já demasiadamente esgotado. 

De fato, em um primeiro momento, o filme turco está preocupado em criar um universo verossímil de crueldade e pouca complacência para as crianças da escola na qual a história se passa. Em uma rotina praticamente militar, o que as sequências iniciais mostram é um tratamento “de choque”, com excessos de um punitivismo sádico para cada deslize que aqueles jovens cometem, desde banhos gelados até jejuns forçados ou tapas na cara. Se os professores/inspetores tratam os alunos da maneira mais formal e brutal possível, é curioso perceber como existe entre aquelas próprias crianças uma certa agressividade mútua, fruto do sistema de medo na qual elas estão inseridas, com uma constantemente dedurando a outra ou fazendo “bullying”. 

Ao mesmo tempo em que todo esse sistema se desenrola ao longo de nossos olhos, existe também uma narrativa acontecendo ali no meio: o jovem protagonista Yusuf um dia acorda e vê seu melhor amigo, quase-irmão, Memo, muito doente, e sai desesperadamente em busca da ajuda de alguma autoridade daquele local. Então, a narrativa funciona como uma jornada por este microambiente, a partir deste ponto de vista infantil completamente perdido entre o caos daquele ambiente, com câmera do diretor Ferit Karahan seguindo o protagonista de perto e muitas vezes atrás dele, em sua busca muitas vezes inútil e fracassada, como no emblemático plano em que ele entra em um corredor cheio, mas todos os personagens saem de cena e ele continua vagando por ele sozinho. 

Neste sentido, O Protetor do Irmão me lembra vagamente a jornada kiarostamiana de Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, no sentido de que se trata de uma caminhada individual de uma criança inocente pelo “mundo”, cruzando com diversos adultos em seu caminho que não lhe dão muita atenção ou não entendem suas motivações. Enquanto isso, as origens de sua partida são exatamente a mesma: o medo do punitivismo dentro da instituição escolar e ao mesmo tempo um carinho extremamente singelo por seu amigo. Ou seja, existe um contraste muito evidente aqui no que nos é mostrado: frente ao habitat extremamente frio e impessoal da escola turca, vai se contrapondo um rosto infantil e puro que humaniza aquela história por meio de sua jornada movida pelo amor.

Por outro lado, existe um outro tipo de ruptura em O Protetor do Irmão que é o modo como ele ressignifica os adultos que estão no topo da cadeia hierárquica desta escola e também altera drasticamente o tom narrativo e até das atuações. Em sua segunda metade, o filme se torna uma espécie de investigação que busca as causas da misteriosa doença de Memo, aparentemente sem explicação. Inclusive, as decisões tomadas até flertam de que vão para o caminho da doença ser metaforicamente causada pelo ambiente tóxico daquela escola, como já visto em tantas outras narrativas sobre enfermidades. Felizmente, fugindo do óbvio, as intenções de Ferit Karahan parecem se virar para um outro lugar, ainda que essa possibilidade de leitura não esteja necessariamente anulada.

Na verdade, o que passa a acontecer é a revelação de uma comédia farsesca, na qual aqueles adultos, membros da instituição rígida, antes vistos como figuras unidimensionalmente cruéis, passam a ganhar contornos de humanidade, ao se mostrarem preocupados com a saúde do garoto. Pode-se dizer que é quase como se o movimento do filme fosse em fazer aqueles personagens entrarem em curto-circuito, a partir de uma temporária baixa de guarda ou um tirar de máscara, saindo de seus personagens cruéis, assim determinados por conta da cadeia que fazem parte, e voltassem a serem minimamente humanos. 

Só que esse não é o único interesse de Karahan, que transforma o filme em uma espécie de whodunnit da responsabilização de culpa, em um exercício bastante similar ao feito pelo diretor brasileiro Jorge Furtado no curta O Dia Que Dorival Enfrentou a Guarda. Talvez mais do que verdadeiramente achar uma cura para o garoto, aqueles adultos entram em um looping acusatório, no qual nenhum deles consegue se olhar no espelho e enxergar sua parcela de culpa para o acontecimento trágico, uma vez que há uma correlação direta de causa e consequência entre as suas crueldades e negligência com o acidente em si.  Assim, O Protetor do Irmão vai para o caminho da clara ironia quando mostra os outros professores reagindo com espanto e discordância ao escutarem os relatos dos atos que seus colegas fizeram, enquanto eles mesmo também fazem muito pior e são incapazes de perceber. Todo este movimento culmina na cena até óbvia de deixar clara a hipocrisia daqueles homens no momento em que um deles acende um cigarro, ainda que seja proibido na escola fumar na frente dos alunos, pois ele não liga mais. 

Ou melhor, um diálogo chave que simboliza todo o filme pode ser aquele que um dos homens responsáveis pela escola fala: “eu sou só um professor, não um guarda”, quando cobrado pelos outros de ter agido com negligência. Curioso então o que revela O Protetor do Irmão: na hora de exercerem excessos de crueldade, eles são a própria guarda pessoal de Hitler, mas já na hora de serem cobrados, eles são apenas o “guarda de esquina”. Portanto, temos aqui um exercício cômico arendtiano sobre banalidade do mal e as instituições. 

O Protetor do Irmão (Okul Tiraşi ou Brother’s Keeper, 2021) — Turquia, Romênia
Direção: Ferit Karahan
Roteiro: Ferit Karahan, Gülistan Acet
Elenco: Ekin Koç, Mahir İpek, Cansu Fırıncı, Melih Selçuk, Münir Can Cindoruk, Same, Yıldız, Nurullah Alaca
Duração: 85 mins.

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