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Crítica | O Que a Carne Herda

por Luiz Santiago
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Antes de dirigir O Que a Carne Herda, Elia Kazan já havia abordado o tema do preconceito em um de seus filmes, A Luz é Para Todos (1947). Naquela ocasião, seu foco era o antissemitismo e, com base nisso, o diretor fez uma denúncia que encontrava lugar em boa parte da sociedade americana ainda marcada pela ideologia eugênica (e derivadas) fortalecida durante a Segunda Guerra Mundial.

Dois anos depois, Kazan voltava a entregar um filme-denúncia sobre o preconceito mas, desta vez, o preconceito étnico. O Que a Carne Herda foi o primeiro filme de Hollywood a abordar de maneira aberta e crítica a questão do negro na sociedade, o que evidentemente foi um escândalo para algumas comunidades da nação, lugares e pessoas que ainda sustentavam o ranço da opressão, uma realidade que demoraria pelo menos três décadas para cair por terra em termos estruturais no país.

Sob produção de Darryl F. Zanuck (que já tinha financiado dois projetos de Elia Kazan, O Justiceiro e A Luz é Para Todos), O Que a Carne Herda teve um início de produção explosivo, com John Ford na direção. O veterano e respeitado cineasta tinha acabado de sair de um western (O Céu Mandou Alguém, 1948) e estava prestes a entrar em outro (Legião Invencível, 1949), quando aceitou a proposta de Zanuck para dirigir este drama que expunha o preconceito racial nos Estados Unidos.

À parte algumas diferenças ideológicas que tinha com o produtor, Ford passou sem maiores problemas pelas negociações iniciais, mas seu temperamento explosivo, sua antipatia extrema em relação à atriz Ethel Waters e os atrasos na agenda da primeira semana – um comportamento quase inacreditável vindo do cineasta, que simplesmente odiava atrasar a produção – marcaram a primeira semana do filme, o que culminou com uma atitude conjunta: Ford inventou que estava doente e Zanuck o demitiu, levando a mentira adiante, para a imprensa. No lugar do veterano, assumiu o novato mas muito bem falado Elia Kazan, cuja única condição para entrar no projeto foi que todo material dirigido por John Ford fosse descartado.

A maior crítica que podemos fazer a O Que a Carne Herda é o fato de que foi escalada uma uma atriz branca (e de limitadíssima amplitude dramática) para fazer o papel de uma personagem negra em um momento de conflito moral. A questão chega ainda a ser mais bizarra do que pintar Al Jolson de preto em O Cantor de Jazz, porque pelo menos no filme de 1927 a intenção não era fazer nenhuma crítica ao preconceito racial ou apontar as desigualdades e injustiças do sistema em relação às pessoas, no qual, ao menos no sentido jurídico, todos deveriam ser iguais. Essa barreira da escalação da atriz impede que o espectador compre a ideia do filme desde o início e, mesmo que se acostume com a brancura dita negra de Jeanne Crain, haverá o permanente olhar para essa incontestável incoerência.

Elia Kazan ainda consegue fazer milagres com a canastrice de Jeanne Crain, filmando-a sob ângulos criativos e dando-lhe closes nos momentos mais dóceis e calmos do roteiro, uma forma de não passar para o espectador a incapacidade da atriz em parecer zangada ou exprimir qualquer expressão que não fosse a de uma corista dominical.

Mas se a atriz principal decepciona bastante (o que me faz perguntar o por quê indicaram-na ao Oscar na categoria), temos a presença de Ethel Waters e Ethel Barrymore (ambas indicadas ao Oscar de coadjuvantes) para iluminar o filme. Cada uma pertence a um cenário específico da trama e suas atuações deixam claro para o espectador os dois lados da moeda que o texto nos quis mostrar.

Com ótimos cenários – e destacamos aqui a sombria e solitária casa de Miss Em e a pobre mas aconchegante casa da avó de Pinky –, além de uma muitíssimo bem dirigida cena de tribunal, O Que a Carne Herda é um filme válido em sua concepção e muito bem executado por Kazan. O roteiro peca bastante, especialmente no desenvolvimento das personagens, porém, o todo nos traz mais pontos positivos do que negativos, o que torna a sessão válida e até nos faça pensar e tomar partido dos personagens em um momento ou outro da narrativa.

Acima de tudo, O Que a Carna Herda é um documento histórico, um exemplo de como era a abordagem mais humanista possível em Hollywood no que dizia respeito à opressão racial. E o que vemos ao longo de seus 102 minutos nos diz muita coisa sobre essa Meca do cinema e sobre a época que o produziu, seja para bem, seja para mal. Se não pela qualidade, a obra deve constar na lista dos cinéfilos por ser um escancarado sinal de seu tempo a respeito de um assunto até então bastante delicado de se tratar abertamente.

O Que a Carne Herda (Pinky) – EUA, 1949
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Philip Dunne, Dudley Nichols, Elia Kazan, Jane White (baseado na obra de Cid Ricketts Sumner).
Elenco: Jeanne Crain, Ethel Barrymore, Ethel Waters, William Lundigan, Basil Ruysdael, Kenny Washington, Nina Mae McKinney, Griff Barnett, Frederick O’Neal, Evelyn Varden, Raymond Greenleaf
Duração: 102 min.

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