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Crítica | O Que Ficou Para Trás

por Ritter Fan
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Com seu trabalho engajado, Jordan Peele vem conseguindo combinar terror com representatividade e causas socioeconômicas relevantes, mas sem abrir mão da qualidade. Não é, claro, invenção dele, mas ele certamente trouxe diversas questões importantes à superfície usando o gênero e outros cineastas continuaram a tendência como Misha Green na recente Lovecraft Country. O Que Ficou Para Trás (His House, no original) é mais um exemplar cinematográfico nessa linha, desta vez co-produzido pelo Netflix e BBC, abrindo caminho para Remi Weekes debutar na direção e no roteiro de longas de maneira surpreendente.

O longa usa a conhecida estrutura de casa mal-assombrada para lidar com traumas, culpa, perda e preconceito que orbitam o casal de refugiados do Sudão do Sul que são transferidos de um centro de detenção para uma moradia provisória na Inglaterra como primeiro passo para a obtenção de um visto de permanência. Rial (Wunmi Mosaku, a Ruby de Lovecraft Country) e Bol (Sope Dirisu, o Fred de Humans) fogem de seu passado violento e da perda da filha na viagem até a salvação, somente para terem que enfrentar seus demônios no apartamento deteriorado que lhes é emprestado pelo governo, aqui representado por Mark (Matt Smith, o 11º Doutor).

O roteiro é esperto em lidar com o passado do casal, mantendo-o econômico e contando inicialmente muito pouco do que aconteceu durante a fuga de seu país, mas sem deixar de frisar o peso da dor que eles carregam a cada diálogo e, claro, a cada aparição aterradora que eles começam a ver na casa mal iluminada. Apesar de esses traumas do passado serem integrais à narrativa, representando, lógico, o horror por que refugiados no mundo todo passam, eles não estão sozinhos. O sonho de ser acolhido pela Inglaterra é destroçado logo de início, quando eles ganham o direito de sair da literal prisão em que vivem para um lugar que, em razão das restrições impostas, nada mais é do que uma outra versão de prisão, uma em que o governo sedentamente espera que eles cometam erros para justificar sua expulsão e que a população ao redor os trata como dejetos humanos.

Weekes, mesmo fora do ambiente da casa, é capaz de criar tensão com quase nada, algo representado magistralmente pela caminhada de Rial até a clínica mais próxima, com as ruas tornando-se labirintos e três garotos negros debochando quando ela pede ajuda e gritando “volte para a África!”. Outro exemplo é com Bol procurando Mark para pedir a ele outra moradia, sem poder explicar o porquê pelo medo de sua posição frágil ser ameaçada. A tensão criada por uma mera conversa em plano e contraplano é algo que dá gosto de ver, com Sope Dirisu dominando o cenário. Em outras palavras, o diretor não se vale do artifício da casa mal-assombrada para fazer com que as paredes se fechem ao redor dos protagonistas.

Sem dúvida alguma, porém, é na casa semiabandonada que o benevolente governo permite que Rial e Bol morem que Weekes faz mágica. O espectador mais experiente reconhecerá todo o tipo de artifício narrativo de filmes do gênero, como o uso de sombras furtivas, sons fugidios atrás da parede e olhos observadores, mas Weekes mostra domínio completo sobre os clichês desse tipo de narrativa e oferece um banquete de tensão e sustos em um crescendo muito bem concatenado que, no processo, divide o casal, com  Rial mantendo-se calma e cultivando os rituais de sua terra natal e Bol mais assimilado, realmente querendo amoldar-se ao país para aonde teve que fugir.

Com isso, o passado vai aos poucos cobrando seu preço especialmente de Bol, que se recusa a ceder às pressões sobrenaturais e também à sua esposa que passa a desejar o retorno ao Sudão do Sul. Trabalhando sombras profundas com um fotografia realmente assombrosa de Jo Willems combinada com uma trilha sonora cuidadosa para não ser intrusiva de Roque Baños, além de uma belíssima arquitetura sonora, o longa de Weekes faz muito com o pouco que tem, sem esmorecer um segundo sequer e mantendo o ritmo apertado por quase toda sua duração.

Minha única reticência é em relação ao enfrentamento final, logo após a revelação de detalhes do passado, o que acontece sem uso de flashbacks padronizados, mas sim de mergulhos sobrenaturais nas mentes dos dois. Esse enfrentamento, que deixarei críptico para não dar spoilers, ganha uma explicitude que me pareceu desnecessária para a abordagem mais psicológica do longa. Sim, há a presença constante de fantasmas do passado, mas o momento climático poderia ter sido trabalhado da mesma maneira moderada que marca todas as demais sequências de horror. O bom é que a sequência em questão não demora e, portanto, não pesa demais na impressão geral do longa.

Com ótimas atuações, respeitosa e relevante abordagem socioeconômica e direção precisa, O Que Ficou Para Trás consegue assustar de verdade sem deixar de passar sua forte mensagem mesmo quando a salvadora luz do dia cerca os personagens. Não há saída para os refugiados que só têm morte atrás e desprezo à frente. A casa mal-assombrada parece até mesmo ser apenas o menor dos males.

O Que Ficou Para Trás (His House – EUA/Reino Unido, 30 de outubro de 2020)
Direção: Remi Weekes
Roteiro: Felicity Evans, Toby Venables, Remi Weekes
Elenco: Sope Dirisu, Wunmi Mosaku, Malaika Wakoli-Abigaba, Javier Botet, Matt Smith
Duração: 93 min.

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