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Crítica | O Que Nos Mantêm Vivos

por Iann Jeliel
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A representatividade está chegando de maneira mais natural ao cinema gradualmente, sem precisar tocar nas mesmas teclas de questões sociais, apenas histórias que foram repetidas à exaustão, sendo representadas por minorias para ter uma roupagem nova por mais que dentro de um suco já bem batido no liquidificador. O terror está sendo talvez o primeiro gênero que vem trazendo grandes histórias nesse sentido, incluindo várias que passam mais despercebidas do público, como é o caso desse bom exemplar canadense. Já adianto, O Que Nos Mantêm Vivos é o típico filme que quanto menos soubermos melhor, por que isso favorece a própria proposta narrativa.

O roteiro desconstrói a ligação com a feminilidade aparentada no início devido aos conflitos do casal, colocando-o apenas como uma peça de desnorteamento para por trás encaixá-la como elemento de motivação para o conflito principal ser depois orquestrado com sabedoria pelo cineasta Colin Minihan. Em suma, os flashbacks servem para ludibriar nossa maneira de tentar adivinhar para onde essa história vai gerar conflito, sendo que o objetivo deles nada mais é do que instaurar o medo do desconhecido íntimo das pessoas, inclusive das mais próximas. O passado pode guardar segredos terríveis e inesperados a depender do contexto que são reativados. Assim, a virada inicial precisa ser escondida para que o impacto dela seja proporcional ao impacto da descoberta para as personagens.

A partir daí, ótimas atuações sustentam um nível de imprevisibilidade envolvente, principalmente nas duas primeiras partes. É difícil entrar em detalhes sem nenhum tipo de spoiler, mas pode-se dizer que um grande fato altera consideravelmente o estado mental de ambas as personagens e instaura um jogo de sobrevivência sagaz onde elas precisam colocar as desavenças de lado para alcançar um objetivo. É tenso e inventivo, por conseguir estender uma situação até mesmo simples de se resolver e dissolvê-la sem parecer enrolação através de 100 minutos. É ágil e muito bem dirigido, apontando para diversos nortes possíveis desconstruídos de forma inteligente afim de deixar sempre a situação com grande nível de urgência.

A valorização cenográfica ajuda muito. O bosque é explorado de uma forma quase claustrofóbica, sem saída aparente por elementos precisos no texto para afunilar o conflito. A fotografia transmite bem essa sensação, ela é aberta em sua boa parte para amplificar a grandiosidade do cenário e torná-lo engolidor e, nos momentos certos, fechada para causar angústia mais intima. O intimismo é fundamental para desenvolver as personagens e tornar a situação relevante para ambos os lados. Contudo, os esforços por parte de Colin seriam inúteis sem atrizes empenhadas e convincentes o suficiente para cada mudança comportamental e tanto Hannah Emily Anderson como Brittany Allen entregam com muita verossimilhança todas essas nuanças de mudanças repentinas.

Infelizmente, o jogo intrigante envolvendo as duas acaba estendendo-se demais no terceiro ato por decisões questionáveis e desdobramentos forçados para tentar impressionar em algum anti-clímax que não caberia mais naquele momento do filme. A surpresa já havia sido entregue no início, então a resolução deveria ser mais objetiva, mas ela acaba por dar várias voltas para chegar a um mesmo lugar, sendo cíclico e apenas justificado por conveniências incômodas e apelativas. São escolhas que levam o projeto para um final no mínimo acridoce dentro do que havia sido construído até então e, mesmo que tivessem sido planejadas, poderiam ser mais enxutas e ousadas como nos atos anteriores.

Ainda assim, O Que Nos Mantêm Vivos consegue cumprir o que promete ao entregar um exercício sólido de tensão em boa parte de sua duração. Misturando Doce Vingança com Corra! em um thriller de sobrevivência intrigante, bem dirigido, inventivo e até de certo modo imprevisível, o longa entrega boas surpresas em uma tensa e sanguinária jornada guiada por duas grandes atuações femininas de muita química. E por fim e não menos importante, é mais um passo para a representatividade tornar-se algo cada vez mais comum, sem precisar necessariamente ser vista sob o prisma de crítica social.

O Que Nos Mantêm Vivos (What Keeps You Alive, Canadá – 2018)
Direção: Colin Minihan
Roteiro: Colin Minihan
Elenco: Brittany Allen, Hannah Emily Anderson, Charlotte Lindsay Marron, Joey Klein, Martha MacIsaac
Duração: 98 min.

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