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Crítica | O Refém (The Hostage)

por Kevin Rick
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O Refém, ou The Hostage como no título original, é o tipo de obra feita com o intuito de ser uma reflexão social. O criador da HQ, Sal Abbinanti, é um artista americano bastante respeitado na indústria de quadrinhos, conhecido por parcerias com titãs da Nona Arte como Alex Ross e Bill Sienkiewicz, e tem sua estreia como roteirista/ilustrador em uma graphic novel autoral com The Hostage. Fruto de um kickstarter, a HQ é baseada no pequeno período que o autor ficou no Brasil, no qual pôde testemunhar a triste realidade das crianças de rua no Rio de Janeiro.

Foi uma leitura curiosa, pois é o quadrinho mais… documental que eu já li. Eu sei que é uma denominação estranha, ainda mais pensando na arte abstrata e na linha fantástica (já falo disso), mas a minha experiência com o quadrinho baseou-se bastante no real, e em sua mórbida e trágica reflexão. Pelo título e a premissa, é possível ter uma ideia da proposta de Abbinanti antes mesmo da primeira página, mas isso não nos prepara para o discurso social, pois mesmo sabendo da realidade destas crianças, ter conhecimento e testemunhar são situações completamente diferentes.

E a linguagem da obra é focada nesse sentimento de recepção, no qual Abbinanti tem muito êxito em transpor como se sentiu nestes momentos de descoberta, proporcionando um terrível desconforto ao leitor. Por mais que tenha uma visão de “fora” – que, aliás, engrandece a observação -, Abbinanti tem um grande cuidado inicial em navegar na emoção e pensamento destas vítimas sociais. É completamente impossível exprimir o que elas verdadeiramente sofrem, mas os diálogos fazem um bom trabalho de relatar o motivo e a consequência. Motivos sociais, desde a realidade miserável das favelas, os grupos de extermínio (traficantes e policiais), a fome, o abandono e a resignação dos privilegiados; e consequências como o roubo, o uso de drogas, a fuga e, por fim, a morte, sempre tratada como estatística.

Depois de uma introdução desconfortante e reflexiva, o autor acaba se perdendo um pouquinho na história ao inserir o fantástico/sobrenatural, apesar de adicionar bons elementos de comentário social brasileiro através da mitologia, folclore e religião. Abbinanti cria uma narrativa religiosa (Umbanda e Candomblé), com as crianças se juntando e invocando um espírito chamado O Refém para vingar seus amigos assassinados e os protegerem do mal adulto. Tenho pouco entendimento dessas vertentes religiosas para poder versar sobre estereotipização ou fidelidade no retrato que Abbinanti demonstra, mas a ideia do autor parte mais de uma questão regional, seja ela folclórica ou religiosa, como maneira de vingança dos jovens.

Novamente, como exteriorização do seu testemunho trágico, o autor parte da tristeza, para a contextualização, até inserindo temáticas de preconceito ancestral, racismo e história hedionda brasileira em relação aos escravos e indígenas, finalmente chegando na raiva. O fantástico adentra a narrativa como uma personificação brasileira da angústia destes jovens para proporcionar justiça, algo que sabemos ser complexo na realidade, por isso o viés mitológico é manuseado como proteção daqueles desprotegidos e ignorados.

A aquarela surreal dos painéis, como vistos acima, funciona como significado duplo na minha concepção, da aparência colorida do Brasil, tão bem propagada como a felicidade multiétnica brasileira, mas ao ilustrá-la com o abstrato e o surreal, o autor pinta o verdadeiro cenário contraditório da sociedade nacional. Mesmo tendo uma visão um pouco efêmera e turva da cultura brasileira, Abbinanti faz um belo contorno da parte podre social, utilizando o regional, no folclore, como retaliação. Uma maneira de dar voz às crianças moradoras de ruas, inocentes subjugadas pela malignidade.

Acho que o autor perde um pouco a mão na ficção, e a maneira como carrega a arte e a diagramação, apesar de engrandecer o sentimento de desconforto, deixa a leitura mais confusa que o necessário, mas Abbinanti tem êxito na sua proposta principal: provocar reflexão. O Réfem acompanha a trágica realidade de crianças de ruas, muitos “filhos” da favela, no contexto do Rio de Janeiro obviamente, mas já fazendo ponte com um quadro nacional, e de como precisa ser vista e carregada com uma responsabilidade civil, afinal, os reféns da sociedade não dispõem de um espírito folclórico protetor.

The Hostage | EUA, 2021
Roteiro: Sal Abbinanti
Arte: Sal Abbinanti
Capa: Dave Riske
Letras: Dave Sharpe
Design: Josh Johnson
Editora original: Mercury Comics
69 páginas

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