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Crítica | O Retorno (2024)

O herói astuto e resiliente da Odisseia.

por Leonardo Campos
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As complexidades da jornada de Ulisses permeiam diferentes camadas de compreensão, desde questões existenciais até reflexões sobre a natureza da humanidade. A Odisseia, como já explicitado em outros textos por aqui, não é apenas uma história de aventura, mas uma poderosa meditação sobre a vida, bem como sobre a existência e os dilemas humanos, refletidos em sua caminhada pela sociedade, abordagem que continua a inspirar e instigar debates e produções de entretenimento, como o caso desta narrativa exuberante dramaticamente. O Regresso de Ulisses, dirigido por Uberto Pasolini, é um épico que nos apresenta um impressionante desempenho de Ralph Fiennes como Odisseu, ao lado de Juliette Binoche como Penélope, ambos inseridos num enredo que interpreta uma versão moderna das últimas partes do poema em questão, a icônica composição poética atribuída ao grego Homero, com roteiro de Edward Bond e John Collee, em colaboração com Pasolini, cineasta que assina os elementos deste texto dramático coeso e coerente. Na produção, após vinte anos de guerra em Troia, Odisseu retorna nu à sua terra natal, Ítaca, onde é acolhido por dois de seus fieis escudeiros. No entanto, ele se vê devastado pelas cicatrizes da guerra e pelo estado de seu reino, que deteriorou durante sua ausência. Enquanto isso, a sua esposa enfrenta uma crescente pressão dos pretendentes a se casar, que estão ansiosos para assumir o controle do reino em crise. O filho de Odisseu, Telêmaco, interpretado por Charlie Plummer, se recusa a ceder às pressões destes homens inescrupulosos, algo que permeia a tensão ao longo dos 116 minutos de um enredo clássico que já conhecemos bem.

Enquanto a situação se agrava, Penélope se dedica a tecer a mortalha de seu sogro idoso, um ato que simboliza sua resistência e lealdade ao marido. Angustiado, o filho sugere que ela escolha um pretendente para restaurar a ordem, mas fiel esposa se recusa, preferindo finalizar a mortalha antes de tomar uma decisão. Com a morte do sogro e a pressão crescente dos pretendentes, que insistem na morte de Odisseu, ela promete que usará a vestimenta como seu vestido de noiva e que tomará uma decisão em breve. Neste processo, o protagonista planeja estrategicamente seu retorno. Assim, O Regresso de Ulisses se destaca por reimaginar a narrativa da segunda metade da Odisseia, deliberadamente omitindo as aventuras míticas do herói, como seu encontro com sereias e a luta contra o Ciclope. Essa escolha permite ao diretor Uberto Pasolini contar a história de maneira mais realista, concentrando-se nas dimensões psicológicas dos personagens. Diante deste desprendimento em relação ao que é da ordem do mitológico, a trama favorece uma abordagem intimista, que se aprofunda nas emoções e conflitos internos do casal, numa decisão dramática que desloca o foco do extraordinário para o cotidiano, destacando as lutas humanas e a resiliência emocional em um cenário de desolação.

A direção de fotografia assinada por Marius Panduru, marcada por uma estética “elegante e discreta”, sem os excessos de efeitos visuais que poderiam carregar demais sua composição, contribui para a atmosfera do drama psicológico que Pasolini busca criar. O que temos como resultado é um drama psicológico cheio de carga emocional, produção que oferece uma visão incisiva da situação dos personagens. A abordagem do diretor não apenas recontextualiza a história clássica, mas também proporciona um cinema “envolvente” que ressoa com as nossas experiências, enquanto público, diante de uma trama repleta de liberdades face ao material que serve como ponto de partida para os realizadores. O design de produção de Giuliano Pannnuti estabelece uma cenografia e direção de arte com toques clássicos, eficiente e ainda mais assertiva quando expõe em cena os figurinos de Sergio Ballo, coerentes com a época retratada. Essa interpretação mais humana da obra de Homero permite uma reflexão mais profunda sobre os temas da espera, da perda e da luta pela identidade, revelando as complexidades que permeiam as relações familiares e a noção de pertencimento em tempos de crise.

Ao final, depois de refletir ao longo da sessão, juntamente com a informação sobre uma nova abordagem grandiosa para o próximo ano, isto é, o esperado filme de Nolan, nós podemos observar que a Odisseia, de Homero, é um dos pilares da literatura ocidental, conteúdo que continua a fascinar o público contemporâneo por suas complexidades e enredo de identificação plena com muitas questões que nós humanos vivenciamos cotidianamente. Ulisses é o arquétipo do viajante e do herói que enfrenta desafios não apenas físicos, mas também espirituais e emocionais. Sua longa jornada de volta para Ítaca simboliza a busca incessante pelo lar e pela identidade. Essa temática ressoa fortemente em um mundo moderno em que muitos se sentem deslocados ou em busca de propósito. A ideia de que a jornada é tão importante quanto o destino final nos permite lembrar que o crescimento pessoal muitas vezes ocorre através das dificuldades enfrentadas ao longo do caminho. Os conflitos internos e a dualidade humana, priorizados por aqui, como já mencionado, delineiam o estilo adotado pela equipe de realizadores que entende o material que assume. Destaque para a sutil composição musical de Rachel Portman para a narrativa, delicada quando é preciso, contundente, mas sem exagerar na textura percussiva, outro primor desta produção peculiar no universo das traduções homéricas para o cinema.

Ulisses é uma figura complexa, marcada por suas fraquezas e virtudes. Ele é ao mesmo tempo astuto e impulsivo, corajoso e nostálgico. Essa dualidade reflete a condição humana: somos capazes de grandes feitos, mas também suscetíveis a erros e fraquezas. Essa luta interna é uma experiência universal e contemporânea, convidando os leitores a refletirem sobre suas próprias complexidades. A dúvida e a incerteza que Ulisses enfrenta nos convidam a considerar como lidamos com nossas próprias lutas internas. Sua caminhada é uma jornada pavimentada pela sabedoria da experiência, afinal, um dos aspectos mais profundos da poesia homérica é a valorização do conhecimento e daquilo que é experimentado e adquirido ao longo da vida. À medida que Ulisses enfrenta diversas armadilhas e desafios, como os Ciclopes, as sereias e a feitiçaria de Circe, por exemplo, ele aprende e evolui. Tais figuras mitológicas, mesmo suprimidas, estão onipresentes na narrativa. Nós, do lado de cá, sabemos em que ponto o herói se encontra ao se apresentar em cena, mesmo que tudo isso não seja explicitado. Este tema tem uma forte ressonância na sociedade contemporânea, onde a sabedoria prática é frequentemente subestimada em meio à busca por conhecimento teórico. A jornada de Ulisses nos lembra da importância da aprendizagem que vem da experiência e da reflexão sobre as lições da vida.

Outro destaque que a produção evidencia é a natureza da heroicidade. Ulisses desafiou a ideia tradicional de heroísmo, não se limitando à força física e bravura, mas utilizando a inteligência e a astúcia para superar os obstáculos. Essa visão mais ampla do heroísmo estimula uma reflexão sobre o que significa ser um herói nos dias de hoje. Em uma era onde os heróis são frequentemente celebrados por grandes feitos, pode ser mais relevante reconhecer e valorizar as pequenas vitórias e as contribuições silenciadas do cotidiano. Assim, a postura heroica está na resiliência, na virtude e na capacidade de se adaptar. O desempenho dramático de Ralph Fiennes capta muito bem estes aspectos. Ademais, o protagonista, ao longo de sua travessia desafiadora, questiona e reafirma sua identidade como rei, pai e homem. Sua jornada para voltar a Ítaca não é apenas um retorno físico, mas uma busca pela essência de quem ele é. Esse tema crítico se manifesta fortemente na era contemporânea, caracterizada por constantes mudanças sociais e tecnológicas que desestabilizam identidades. O dilema de Ulisses nos leva a refletir sobre como construímos e reconstruímos nossas identidades em um mundo em constante evolução, e nos lembra da importância de encontrar um senso de pertença.

Em linhas gerais, um filme envolvente e reflexivo. Tal como a poesia que lhe é ponto de partida.

O Retorno (The Return) — Reino Unido, Itália, Grécia, França, 2024
Direção: Uberto Pasolini
Roteiro: Uberto Pasolini, John Collee, Edward Bond
Elenco: Ralph Fiennes, Juliette Binoche, Charlie Plummer, Marwan Kenzari, Claudio Santamaria, Ángela Molina, Nikitas Tsakiroglou, Tom Rhys Harries, Jamie Andrew Cutler, Moe Bar-El, Amir Wilson, Jaz Hutchins, Hugh Quarshie, Chris Corrigan, Aaron Cobham, Amesh Edireweera, Ayman Al Aboud, Nicolas Exequiel Retrivi Mora, Giorgio Antonini, Matthew T. Reynolds
Duração: 116 min.

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