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Crítica | O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde

O retrato de muitos de nós.

por Ritter Fan
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Existem três versões de O Retrato de Dorian Gray, o primeiro e único romance de Oscar Wilde. A primeira, publicada nas edições americana e britânica de julho de 1890 do periódico americano Lippincott’s Monthly Magazine – que, mais cedo no mesmo ano, publicara O Signo dos Quatro, o segundo romance de Sherlock Holmes, por Arthur Conan Doyle – é uma novela editada por J. M. Stoddart sem anuência do autor para retirar passagens “indecentes”. A segunda, que é o objeto da presente crítica, é a versão da novela que o próprio Wilde alterou, mantendo as edições de Stoddart, mas acrescentando diversos outros capítulos, inclusive o famoso prefácio sobre a “arte pela arte”, fazendo com que a obra ganhasse o tamanho de um romance. A terceira, publicada somente em 2011, é o manuscrito original, antes das alterações feitas tanto por Stoddart quanto por Wilde, que reverte a obra ao tamanho de uma novela e que normalmente é referenciada como sendo a “versão sem censura”.

A história, sobre um homem que faz um pacto faustiano e mantém-se sempre jovem e belo enquanto seu retrato, que ele mantém escondido, envelhece, é, provavelmente, conhecida por todos de uma maneira ou de outra, mas os contornos e detalhes do romance gótico vitoriano de Wilde são ainda mais interessantes do que a premissa macro. Não só a discussão sobre o valor da juventude e beleza física é posta em primeiro plano, com o autor fazendo de Dorian Gray – que ele mesmo classifica como sendo “o que ele gostaria de ser” – um jovem vão, narcisista e influenciável que, ouvindo as palavras que Lorde Henry “Harry” Wotton diz sobre hedonismo e sobre (a)moralidade para seu amigo pintor Basil Hallward enquanto este pinta o malfadado retrato, torna-se um produto de seu tempo, converte-se na exata manifestação física daquilo que Wotton veementemente defende.

A caracterização de Wotton como o “diabo”, como a tentação que termina de perverter a alma de Gray e que Wilde afirma ser o que o mundo pensa sobre ele – e não sem estar completamente coberto de razão na época – é magnífica e, diria, o verdadeiro coração do romance, ainda que usar o termo “coração” na mesma frase que o personagem seja uma contradição em termos. Para todos os efeitos, ele é a própria encarnação da Era Vitoriana, na visão de Wilde, com o profundamente moralista Basil Hallward sendo literalmente o exato oposto (conforme o autor, Hallward é “quem ele pensa que é”), recriando textualmente um dos grande conflitos do reinado da Rainha Vitória, com o recrudescimento da religiosidade e misticismo entrando em conflito com os avanços tecnológicos e artísticos. O Dorian Gray que mantém para sempre sua beleza é, portanto, fruto dessa embate de visões que, no romance, assume para si a visão de Wotton, com os dois deixando o gentil e sensível Hallward completamente de lado, esquecido como quase um vestígio do passado, ainda que ele, claro, seja a única voz de sensatez em meio ao que se desenrola e que leva Gray a uma espiral de crueldade pela qual ele passa incólume, mas que seu retrato reflete com acurácia.

A grande controvérsia sobre o romance e que levou às três versões que mencionei no parágrafo introdutório gira em torno da abordagem homoerótica que Wilde dá à trinca de personagens. Um leitor de hoje dificilmente ficaria escandalizado com a leitura do romance, ou mesmo teria dificuldades de interpretar as não tão sutis entrelinhas que resultaram da versão editorializada por Stoddart e Wilde, mas, por outro lado, é fácil identificar o porquê da celeuma original. E, diria, que a homossexualidade, sozinha, não é o que gerou a censura prévia, ainda que, provavelmente, a tenha catalisado. A questão maior e mais ampla é a visão retorcida, amoral e decadente primeiro de Wotton e, em seguida, de Gray, sobre a vida, sobre seus pares e, sobretudo, sobre a época em que o romance foi escrito e como isso efetivamente representa o período. O incômodo está na “acusação” subtextual que Wilde faz à aristocracia, evidente e inevitável público alvo de sua obra e a caracterização principalmente de Wotton como um homem abertamente homossexual – ou pelo menos bissexual – é como a “cereja no bolo” que termina de escancarar as portas para uma realidade que poucos à época admitiam de verdade. De certa forma, Wilde condena justamente a impossibilidade de homossexuais abraçarem o que são sem serem alvejados pela sociedade ao redor e não, como a crítica da época afirmava, revela-se ele próprio como hedonista, até porque é evidente pelo desenrolar da história a visão equilibrada do autor sobre o assunto.

A leitura desta obra de Oscar Wilde é supreendentemente fácil mesmo no original em inglês, com o texto apresentando uma fluidez excelente, algo que pessoalmente duvidava justamente pelas modificações que o texto original sofreu em sua conversão de novela a romance. Talvez haja um pouco mais de didatismo do que o necessário para deixar evidente a visão de mundo de Wotton, com longas passagens em que ele explica sua filosofia, mas é justamente por Wotton ser o mais interessante da trinca de personagens que isso acaba não sendo um problema real. Tive mais reticências sobre a passagem temporal, porém, já que ela não é muito bem marcada, apesar de ser importante notadamente para o terceiro terço da obra que lida com Gray praticamente sozinho corrompendo-se e corrompendo o mundo. Sem envelhecer, sem perder sua beleza, Dorian Gray vive uma vida longa e talvez a própria concisão do romance impeça essa visão temporal macro, ainda que haja esforço aqui e ali para estabelecer alguns marcos temporais relevantes. Talvez até pela mesma razão, Wilde não se permite soltar completamente os freios dos feitos de seu protagonista, o que, talvez em uma visão moderna de uma obra mais do que centenária, seja uma injustiça.

O Retrato de Dorian Gray é, inegavelmente, um clássico literário moderno que é assustadoramente atual, considerando que vivemos hoje ainda mais do que antigamente, em um mundo dos “15 minutos de fama” a qualquer preço e em que a visão de mundo de muitos não é muito mais profunda do que um pires pela profusão de informação e facilidade de acesso a ela. O ser belo e jovem continua sendo hoje tanto a norma quanto no final do século XIX e muitos de nós têm um retrato contorcido escondido em algum lugar de nossa vida, revelando que aprendemos pouco nesse tempo e, pior, talvez sequer tenhamos consciência do efeito do que fazemos em relação a terceiros.

O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray – Reino Unido, 1891)
Autor: Oscar Wilde
Editora original: Ward, Lock and Co.
Data original de publicação: abril de 1891
Editora no Brasil: Penguin
Tradução: Paulo Schiller
Data de publicação: 12 de abril de 2012
Páginas: 264

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